Migrantes. Na Sérvia o pesadelo ainda não acabou

A fronteira da Sérvia foi a mais complicada de passar. Mandam-nos sair do autocarro, abrem-se todos os possíveis compartimentos e percebemos mais tarde que a situação do tráfico de migrantes assim o exige. Os que trabalham com o assunto contam-nos que a Sérvia está lotada e os que vieram a sonhar com a Europa não…

Chegámos à Sérvia já era noite, depois de uma viagem de doze horas de autocarro. Os assentos eram desconfortáveis, não havia internet e as pessoas não falavam todas as mesmas línguas, o que dificultava a comunicação. Uma rapariga cigana romani de 23 anos trazia consigo dois filhos, um ainda com meses e uma menina de dois anos. Iam sentados à nossa frente e na fronteira implicaram com o passaporte e sobrenome das crianças, que era alemão, como o do pai.

Ao fim de algum tempo deixaram-nos passar até à entrada da Sérvia, mas obrigaram-nos a sair do autocarro e a sentir cada extremidade do corpo a gelar, já que as temperaturas naquela zona eram as mais baixas que sentiríamos durante toda a viagem. Abrem todos os possíveis compartimentos e inspeccionam todo o autocarro.

A partilha deste momento com trocas de olhares empáticos seguidos de suspiros de quem está em sofrimento fizeram com que todas as pessoas, agora fora do autocarro começassem a comunicar, quanto mais não fosse por gestos. Assim conhecemos um professor sérvio sexagenário doutorado em línguas que havia perdido a visão ainda em criança, mas cuja independência era no mínimo inspiradora. Contou-me algumas das suas histórias, a forma como se apaixonou pela mulher que não sofre do mesmo problema, sobre o nascimento das filhas e sobre todos os livros que já escreveu e traduziu em braile.

Chegámos a Belgrado completamente exaustas e assim ficámos no hostel mais barato de toda a cidade, onde pagámos seis euros por noite por uma cama em camarata de oito.

As diferenças de temperatura haviam chegado à falha sistémica dos nossos sistemas imunitários e a partir daí seguiu-se uma temporada complicada no que diz respeito à gestão de energia e curiosidade em conhecer o que havia escondido pelas cidades.

Assim que nos afastássemos da zona do hostel, que era em frente à principal estação ferroviária, os contrastes sociais seriam demasiados. A caminho do centro da cidade, que é moderno, repleto de artistas de rua, livrarias e galerias de arte, conhecemos o lado mais ingrato da cidade.

Num parque à beira rio, debaixo de uma ponte, centenas de homens se aninhavam todos os dias ao final da tarde com cobertores, sacos plásticos e olhos de quem não foi aquilo que imaginou para si. 
A frustração, o desespero e o cansaço são três estados cravados na pele de todos os migrantes que chegam diariamente à capital de Belgrado, com esperança de conseguir ultrapassar a fronteira com a Hungria, ou a Croácia, e assim alcançar a tão sonhada Alemanha. 
O sonho europeu é real e ainda não parou de alimentar uma corrente de gente do oriente cuja dimensão “parece infinita”, dizia Dorde Petrović de 35 anos, responsável pela gestão de trabalho da Crisis Response and Policies Center que trabalha em conjunto com a equipa das Nações Unidas – UNHCR – cuja parceria se centra única e exclusivamente em ajudar todos os que chegam a Belgrado a legalizar a sua situação. Mas não só: é com este grupo de voluntários que se registam todas as necessidades básicas necessárias para que se mantenham de boa saúde, com informações atualizadas sobre a gestão política das fronteiras, bem como sobre os campos que os poderão acolher.

Há dois anos o fluxo migratório na Europa explodiu. A crise humanitária envolveu centenas de milhares de refugiados, oriundos maioritariamente do Médio Oriente e Norte de África que procuravam um oásis na Europa Ocidental.

A situação mais crítica envolvia refugiados, mas hoje a realidade centra-se em migrantes a quem lhes foi vendido o sonho europeu. “Diziam-me que na Europa davam dinheiro na rua às pessoas e que havia mais emprego do que trabalhadores. Como passávamos fome o meu pai juntou o que tinha e comprou uma viagem a um traficante que entretanto me abandonou. Já fui capturado em várias fronteiras, espancado”.

A corrente de pessoas que passa pelo centro de Belgrado “parece não ter fim”, diz Marija Majanovi,ćde 27 anos, voluntária e chefe de comunicação do centro de apoio aos migrantes. “Isto não é nada, antigamente recebíamos grupos de centenas de pessoas todos os dias, sem hora de melhorar à vista”, explica, enquanto comenta a frustração permanente de quem quer ajudar mais e não tem permissão para tal. “O governo proibiu-nos de dar roupa e bens alimentares. No inverno chegaram a estar milhares de pessoas em barracos atrás da estação”.

Ali bem no centro da cidade está montado um centro de acolhimento aos refugiados e migrantes que chegam a Belgrado perdidos num rumo que têm na cabeça, mas que não chega a passar daí. Pelo menos não para os que falam connosco sentados no chão, cobertos com mantas, em pequenos grupos de companheiros de viagem cuja única coisa em comum é o nome do traficante que os levou até lá. Refugee Aid Milesalishe (RAM) é o nome do centro que reune associações e grupos ativos na recepção destas pessoas. “Save the Children” é uma delas e uma dos seus voluntários diz-nos não ter ideia de quantas crianças haverão chegado às instalações do centro sem qualquer adulto.


O centro não está preparado para acolher tantas pessoas durante a noite e é por isso que todos os homens são convidados a deixar as instalações, abrigando-se em parques, debaixo de escadas, ou até mesmo pontes. Zeez, de 17 anos, foi um dos refugiados que abandonou a Síria para fugir de um cenário que se tornou incomportável. O objetivo é encontrar a mãe e os irmãos na Alemanha, mas por enquanto está “preso” na Sérvia, já que a Hungria fechou as fronteiras. Zeez deixou a sua terra em 2010 e desde então está sozinho, por sua conta. O traficante que o trouxe até cá abandonou-o depois de gastar todo o dinheiro na praga de casinos que se estende por toda Belgrado. Foi durante a sua odisseia que descobriu um linfoma a que teve de ser operado de urgência e é graças ao centro RAM que vai conseguindo acompanhar a evolução da doença. Hoje, enquanto a sua história não evolui para um final feliz, decidiu aproveitar o tempo sendo intérprete no centro de apoio onde foi recebido. “É tudo uma questão de sobrevivência. Temos de tentar tirar o melhor possível da realidade e a minha não vai mudar tão cedo”, diz-nos enquanto almoçamos. “Há quem esteja pior do que eu, pelo menos agora tenho onde dormir e já falo bem a língua”.

Quem não está com o mesmo ar é Rawa que deixou os quatro irmãos e o pai no Iraque com esperança de, juntamente com a mãe, conseguir encontrar a irmã que se casou com um alemão há alguns anos. “Viemos num grupo de 14 pessoas a pé, de carro, em malas de camiões e carrinhas, o homem a quem comprámos a viagem não foi isto que nos prometeu. Não era isto que vínhamos para encontrar”, diz-nos com um inglês aprendido graças às canções e aos filmes que via. Mostra-nos o aparelho dos dentes. No Iraque era protésico dentário e conduzia o carro de um advogado. “Espero chegar à Alemanha e conseguir trabalho como protésico para poder mandar dinheiro para casa e dar uma boa vida à minha mãe. Enquanto falávamos chega um grupo de nove paquistaneses. Estão em viagem há um ano e meio. O único que fala inglês acaba de saber que vai ter de dormir no parque: “Temos fome, temos frio, mas pior de tudo é já não termos a esperança que nos fez sair de casa, agora só Deus sabe”.