É um momento simbólico, o final da condição de alunos e o início do exercício da medicina em autonomia, com tudo o que traz de entusiasmo, missão e responsabilidade. No ano em que terminam o curso, os jovens médicos de vários países mantêm a tradição de um juramento, que evoca um código de ética – o mais antigo de que há registos – atribuído ao pai da medicina, Hipócrates. Desde o final dos anos 40 do século passado, o texto usado em muitos países passou a ser a Declaração de Genebra, ratificada pela Associação Médica Mundial (WMA na sigla em inglês), e em alguns locais os médicos deixaram de jurar por Apolo, Esculápio, Higia e todos os deuses do tempo do médico grego. Não é diferente em Portugal, mas este ano o texto sofreu algumas mudanças. E há quem acredite que podem fazer a diferença.
A sexta revisão da declaração de Genebra aprovada pela Associação Médica Mundial foi anunciada no dia 14. Segundo a organização, o texto passa a refletir as alterações das últimas décadas na relação entre os médicos e os seus doentes mas também entre os próprios clínicos, impondo uma relação de partilha de informação e reciprocidade. Por exemplo, até aqui os jovens médicos deviam gratidão aos seus mestres e agora todos devem gratidão e respeito uns aos outros, professores, colegas e alunos. Há também uma preocupação inédita com o burnout – surge a ideia de que os médicos têm de cuidar de si, para prestarem cuidados de maior qualidade. Em Portugal, é um tema caro que tem estado a ser estudado pela Ordem: metade dos médicos apresentam sinais de exaustão.
Ainda assim, é no quarto compromisso da declaração que há quem veja uma mudança de fundo. Pela primeira vez, assinalou a WMA, há uma referência ao respeito pela autonomia do doente, o que nunca tinha acontecido. «Respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente», lê-se, sem que a associação adiante consequências. Será um novo caminho em temas fraturantes como a eutanásia ou o suicídio assistido? Em Portugal, o movimento cívico que pede a despenalização da morte assistida não tem dúvidas e destacou a alteração no seu site.
João Semedo, ex-deputado bloquista e um dos rostos do manifesto que levou o tema ao parlamento em 2016, fala de uma mudança histórica. «Não é possível desvalorizar o significado e o impacto destas alterações. A sua importância resulta do sistemático recurso ao juramento de Hipócrates por parte dos que se opõem à morte assistida, na base de que aquele juramento impedia os médicos de praticar a morte assistida porque valorizava a vida em absoluto e não falava sequer na autonomia do doente, que teria assim um valor relativo e não absoluto», diz ao b,i. o médico, recordando que a versão de 1983 estabelecia, por exemplo, que os médicos deviam guardar respeito absoluto pela vida humana desde o seu início, mesmo sob ameaça, e não fariam uso dos seus conhecimentos médicos contra as leis da humanidade. «Pela primeira vez a autonomia do doente é um valor a respeitar em absoluto pelo médico, a dignidade do doente é valorizada como até agora não era e a vida humana justifica o máximo respeito mas sem absolutismos interpretativos», diz Semedo.
O bastonário dos Médicos reconhece os passos dados na nova declaração: aliás, uma das propostas que tenciona fazer aos diferentes conselhos regionais da Ordem é que este ano o juramento dos médicos seja feito sob este texto. «Nem sempre são usados os mesmos textos nas cerimónias de juramento que acontecem em Coimbra, Lisboa, Braga e Porto», explica Miguel Guimarães. Quanto ao alcance das alterações no diz respeito ao reconhecimento da autonomia do doente, o médico sublinha que esse respeito estava há muito inerente à profissão e mesmo no juramento, quando impunha o respeito por todos, sem discriminação. E o bastonário não acredita que venha a concretizar-se num maior apoio dos médicos à despenalização da morte assistida ou à sua participação na eutanásia. «Penso que a maioria dos médicos não está de acordo e respeitar não significa fazer», sublinha Miguel Guimarães, explicando que noutros casos em que hoje é invocada a objeção de consciência, como na interrupção da gravidez, os médicos têm o dever de respeitar a legislação e encaminhar os utentes. Guimarães dá um exemplo concreto: «Da mesma forma que se um doente quiser ser operado porque entende que deve ser operado, o médico não é obrigado a fazê-lo».
Num cenário de despenalização da morte assistida no país, Miguel Guimarães sublinha que a sua posição será manter o atual código deontológico dos médicos que determina que o médico deve respeitar a dignidade do doente no fim de vida, mas é-lhe «vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia [a prática de prolongar a vida através de meios artificiais e desproporcionais aos ganhos]». O atual regulamento de deontologia médica foi publicado em Diário da República em julho do ano passado, mantendo estes princípios, depois de ter sido estruturado por um grupo de trabalho que envolveu médicos de todo o país. «O que faremos caso a morte assistida seja despenalizada é determinar que os médicos que o façam ao abrigo da legislação do país não serão penalizados disciplinarmente», diz Miguel Guimarães, assegurando desde já que teria de ser preservado o direito à objeção de consciência, o que aliás está previsto no código deontológico da classe. No regulamento, lê-se que o médico tem o direito de recusar práticas que entrem em conflito com a sua consciência, ofendendo os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários.
Nisso, João Semedo concorda, mesmo à luz do que diz a declaração de Genebra. E recorda que no caso da interrupção da gravidez, a lei prevê esse direito. «Pode e deve manter-se o direito à objeção de consciência. É um direito que só não é válido se contrariar as leis do país, o que não seria o caso dado que a própria lei o prevê». E embora também não anteveja um impacto significativo no debate da despenalização da morte assistida, acredita que o impacto simbólico da nova declaração é inegável. «Ninguém poderá voltar a usar o fantasma do Hipócrates», diz. Este ano, são cerca de 1500 jovens médicos a fazer o seu juramento em Portugal. A primeira cerimónia será em Coimbra, no dia 18 de novembro. Segue-se Lisboa, no dia 22 de novembro, Braga a 26 de novembro e Porto, a 10 de dezembro. O bastonário ainda pensou juntar todos os médicos num só sítio, mas a logística seria difícil. O impacto coletivo seria maior. No ano passado, em Lisboa, o juramento encheu a Aula Magna, numa festa com tunas, discursos e a distinção dos melhores alunos. Mas o momento arrepiante é quando as luzes baixam e os médicos repetem em uníssono as palavras do juramento que esperam concretizar.
A nova Declaração de Genebra
Como membro da profissão médica:
– Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da humanidade;
– Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da humanidade;
– A saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações;
– Respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente;
– Guardarei o máximo respeito pela vida humana;
– Não permitirei que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre o meu dever e o meu doente;
– Respeitarei os segredos que me forem confiados, mesmo após a morte do doente;
– Exercerei a minha profissão com consciência e dignidade e de acordo com as boas práticas médicas;
– Fomentarei a honra e as nobres tradições da profissão médica;
– Guardarei respeito e gratidão aos meus mestres, colegas e alunos pelo que lhes é devido;
– Partilharei os meus conhecimentos médicos em benefício dos doentes e da melhoria dos cuidados de saúde;
– Cuidarei da minha saúde, bem-estar e capacidades para prestar cuidados da maior qualidade;
– Não usarei os meus conhecimentos médicos para violar direitos humanos e liberdades civis, mesmo sob ameaça;
Faço estas promessas solenemente, livremente e sob palavra de honra.