A 26 de outubro de 1917 (8 de novembro do calendário atual), as forças bolcheviques do Comité Militar Revolucionário de Petrogrado tomaram de assalto o palácio de inverno e detiveram o Governo Provisório liderado pelo moderado Alexander Kerenski. Alguns meses antes, em fevereiro, quatro dias de grandes manifestações já haviam forçado o Czar Nicolau II_a abdicar, pondo um ponto final na dinastia Romanov.
«Correndo o risco de parecer insensível, a forma mais fácil de dar uma ideia do alcance da Revolução é enumerar as formas como consumiu vidas humanas», escreve o historiador Orlando Figes em A Tragédia de um Povo – A Revolução Russa 1891-1924, que acaba de ser publicado em Portugal pela Dom Quixote). Houve milhares de vítimas nas ruas nesse ano, «centenas de milhares do Terror dos Vermelhos» nos anos seguintes, mais de um milhão na sequência da Guerra Civil e mais ainda «de fome, frio e doença» do que todos os anteriores somados. Escrito quando o autor tinha apenas 36 anos, A Tragédia de um Povo tornou-se rapidamente o livro de referência sobre a Revolução Russa, os seus antecedentes e consequências. O SOL conversou com o aclamado autor britânico numa visita-relâmpago de Figes a Lisboa.
O que o levou a interessar-se pela história da Rússia? Foi um professor, uma viagem que fez, um livro?
Quando estudava em Cambridge, escrevi a minha tese de licenciatura sobre um intelectual judeu alemão bastante obscuro, um jovem hegeliano. Ia fazer uma coisa desse género para a tese de doutoramento mas o meu supervisor, um historiador escocês muito influente chamado Norman Stone, disse-me: ‘Orlando, se tiveres uma discussão com a tua namorada ou esse tipo de problemas, não te vai apetecer andares a debater-te com o Hegel todos os dias. Faz uma coisa mais empírica’. Foi um bom conselho. Obtive uma bolsa do Trinity College, e o Norman sugeriu-me estudar os camponeses russos. Desde jovem que apreciava a literatura russa – Tolstoi, Tchékhov, Turgueniev – e parti para a Rússia pela primeira vez em 1983. Depois voltei em 84, quando já estava licenciado.
Como foi esse primeiro contacto com a realidade russa?
Na verdade em 1983 estive em Kiev. No ano seguinte foi realmente interessante. Formávamos um ‘enclave’ de estudantes estrangeiros num programa de intercâmbio em Moscovo – os soviéticos mandavam espiões para a Grã-Bretanha e nós mandávamos universitários para lá [risos]. Tentei estudar os camponeses do Volga durante o período revolucionário, o que foi difícil, porque não me davam acesso a documentos.
Devia ser complicado…
No arquivo central da Revolução de Outubro, que hoje se chama Arquivo Estatal da Federação Russa, estávamos numa sala à parte para estrangeiros, e não tínhamos acesso aos catálogos dos arquivos. A única coisa a que podíamos recorrer eram as notas de rodapé dos livros dos historiadores russos. Preenchíamos as requisições para os documentos e entregávamo-las noutra sala onde estavam agentes do KGB, mas descobri que havia uma maneira de contornar este sistema. Não podíamos misturar-nos com os historiadores soviéticos, e não podíamos usar a cantina nem nada disso, mas havia uma parte que não tinham segregado – a casa de banho. Só havia uma casa de banho, e eu passava muito tempo lá, até porque era o único sítio onde se podia fumar.
Foi nessa casa de banho que entrou em contacto com os investigadores russos?
Fiz amizade com um historiador soviético que estudava o campesinato. Ele tinha tendências mais liberais do que a maioria dos historiadores soviéticos, e na época de Krushchev escreveu um livro muito crítico das políticas de coletivização de Estaline. Quando Brejnev chegou ao poder acabou por ser marginalizado, mas continuou a ser respeitado pelos arquivistas. Permitiu-me entrar em contacto com os arquivistas e eles ajudaram-me a obter os documentos de que precisava.
Não era arriscado para eles fornecerem-lhe esses documentos?
Acho que devia ser arriscado, mas em 1984 o sistema estava a…
A ‘derreter’?
Sim, a derreter, tinha perdido as garras. Talvez houvesse um pequeno risco, mas as pessoas já não tinham medo como antigamente.
Como era a Rússia naquele tempo? Gostou de lá estar?
Era vagamente perigosa, o que me agradava. Havia muitas mulheres bonitas e eu, como estrangeiro… [risos] diverti-me muito.
Fazia sucesso com as russas?
[risos] Digamos que fui a imensas festas. A intelligentsia era formada por pessoas de alta qualidade – tinha lá muitos amigos jornalistas, escritores e por aí fora, que eram pessoas interessantes. Não se perdia tempo com conversas de chacha, tínhamos belas discussões, boas amizades, isso era atrativo. Claro que o regime era pouco atrativo, mas não era assustador como já tinha sido, até porque se tinha a sensação de que estava de saída. Não estou a dizer que previ o colapso da União Soviética, mas…
E nunca teve problemas?
Uma vez ou duas. Não fui preso, mas meti-me em sarilhos.
Como foi isso?
Cheguei a Moscovo com um casaco de mulher, emprestado pela minha professora de Russo. Nem sequer era muito quente, mas ela tinha sugerido e eu aceitei. Quando chegava aos arquivos, as babushkas, as mulheres que estavam lá, riam-se de mim. E diziam [repete uma frase em russo].
Que significa o quê?
‘Por que estás a usar um casaco de mulher?’. Era humilhante! Um dia decidi que tinha de comprar um casaco como deve ser. O único que havia à venda era um casaco de pele de imitação no Gum [espécie de El Corte Inglés, de Moscovo, hoje um shopping de luxo], que custava 404 rublos. E a única coisa de algum valor que eu tinha para vender era a minha máquina fotográfica, por isso vendi-a. A pessoa a quem eu a vendi obviamente vendeu-a a outra pessoa por milhares de rublos e foi apanhada. Uma noite, depois disso, fui encontrar-me com uma poetisa russa num hotel no centro de Moscovo. Quando saio do hotel vejo imensa gente a tentar apanhar táxi como eu, mas há um que pára imediatamente junto a mim. E o condutor do táxi pergunta: ‘Vai para a Sadova?’, que era exatamente para onde eu ia.
Tentou apanhar outro?
Ao fim de dois ou três táxis que vieram ter comigo e me perguntaram se queria ir para a Sadova, acabei por perceber que não valia a pena. Tinham vindo buscar-me. Nisto, começamos a dar voltas e voltas à Lubianka [sede do KGB e prisão onde foram cometidas inúmeras atrocidades], e começam a interrogar-me.
O condutor ou outra pessoa?
Um tipo sentado ao lado do condutor. E ele sabe imenso sobre mim. Sabe com quem estive, a minha situação financeira em Londres, que tinha mudado, sabe muito sobre mim.
Teve medo?
Não tive mesmo medo – o que é que ele podia fazer? E às tantas ele vira-se para mim e diz: ‘Tens umas belas calças de ganga. Não mas queres vender?’. Era uma armadilha tão óbvia que eu respondi: ‘Claro que não. Isso é ilegal!’.
E foi assim que se safou?
A pergunta dele foi idiota. Por um lado tinham informação muito detalhada, muito sofisticada sobre mim, e por outro tentaram encurralar-me de uma forma tão básica. Foi desagradável, mas não assustador. O meu verdadeiro problema era que podiam cortar-me a bolsa na Grã-Bretanha e mandar-me para casa. Havia a Guerra Fria e [as autoridades britânicas] não queriam problemas, se as pessoas arranjassem problemas eram de imediato recambiadas. E se me mandassem para casa era o fim do meu doutoramento. Quando somos jovens de vinte e tal anos não pensamos nos perigos e corremos riscos estúpidos. Pelo menos eu corri.
Passemos ao seu livro ‘A Tragédia de um Povo’. Escreveu aqui que o «regime Romanov não foi derrubado, desmoronou sob o peso das suas contradições».
E por causa da Grande Guerra. Isso é verdade na medida em que quatro dias de manifestações de grande escala, a que se juntou um motim, foram suficientes para o derrubar. E caiu muito depressa. Claro que isso aconteceu porque em fevereiro de 1917 o regime já era muito impopular. Muitas pessoas, mesmo na própria família Romanov, na classe média, na aristocracia e, claro, nas classes populares, viam o derrube da monarquia como um ato patriótico. A pressão era irresistível.
Bastou um empurrãozinho, foi isso?
Um empurrãozinho. A 26 de fevereiro, o quarto dia de manifestações maciças, quem estava a conter as manifestações era o Regimento Volynsky, adolescentes. Às tantas entraram em pânico, debandaram e dá-se o motim. O Czar poderia ter regressado da Frente, mobilizado forças a sério para acabar com o protesto, cossacos, por exemplo. Teria havido um banho de sangue, claro. Mas não o fez. O resultado foi que bastaram quatro dias de manifestações, e depois houve esse motim em que morreram 1500 pessoas. Ainda foi bastante sangrento, mas aí já estamos a falar da revolução propriamente dita.
Nicolau II acreditava que ‘Deus dirige tudo’. Acha que ele acreditou nisso até ao fim?
Nunca sabemos o que vai na cabeça de uma pessoa. Eu conjeturo que ele preferiu abdicar a permitir uma monarquia constitucional.
Porque via isso como uma traição ao seu dever como soberano?
Sim, ele fez um juramento na coroação em que prometeu defender a autocracia, e achava que não tinha autoridade para pôr isso em causa, por isso lutou tanto em 1905 contra a ideia de permitir a palavra Constituição. Não penso que fosse um homem particularmente inteligente, por isso agarrou-se àquela fórmula: é isto que preciso de fazer para ser o Czar.
Não se mexer nem um centímetro.
Não sair dali. Penso que o fez porque acreditava que tinha sido esse o seu juramento. Ele achava que tinha de ser como o seu pai – os conselheiros, a mulher, toda a gente lhe dizia isso – e acreditava em grande medida no elo sagrado com o povo. Não sabia como lidar com ministros ou abdicar do poder de mandar. Alexandre II [o seu avô, que acabou por ser assassinado] tinha estado nessa situação e encomendou o projeto de uma Constituição, mas em 1917 a Rússia infelizmente estava amarrada a este homem não particularmente inteligente, que não sabia ser um Czar diferente daquilo a que o juramento o obrigava.
Como reagiu o povo russo à morte da família do Czar?
A informação libertada para a imprensa foi apenas de que o Czar tinha sido executado, não falava dos filhos. Mas no contexto de julho de 1918 havia tantos problemas – muita violência, mortandade, guerra civil, fome – que mesmo que as pessoas soubessem que toda a família tinha sido executada não penso que teria havido muito mais reação.
Muita gente fala da Revolução Russa com paixão e olha para ela de uma forma romântica. No início chegou a haver algum idealismo e utopia no projeto bolchevique?
Claro! Talvez até por causa da carga de violência que trouxe consigo – a ideia de destruir para criar algo a partir do zero é romântica. Tem de se ter uma imaginação romântica para acreditar que a destruição pode trazer algo de novo. Penso que quem tende a romantizar são mais os intelectuais e os artistas do que as pessoas comuns. As pessoas comuns identificaram-se com o sistema soviético e acreditaram nele e nos seus objetivos, mas não são românticas. Mas tem razão, o ‘romance de outubro’ é muito comum.
Também por falta de conhecimento do que se passou?
Por ignorância voluntária. É nisso que querem acreditar. Pode falar-lhes na violência, nos horrores, no sofrimento que resultou daí, e até podem reconhecer as mortes e tudo isso, mas acabam sempre a dizer: ‘Sim, mas outubro! Foi um lindo sonho, um mundo de possibilidades…’. As pessoas sempre fizeram isso. Acreditam na Grande Verdade do socialismo ou do comunismo, suspendendo temporariamente o discernimento e o sentido crítico, até porque ‘não se pode fazer uma omelete sem partir alguns ovos’, como dizia Estaline.
Essa frase revela o lado mais pragmático – se não cínico – dos bolcheviques. Ao mesmo tempo que tinham esse idealismo, não eram um grupo de oportunistas apenas ansiosos por tomar o poder?
Em 1917?
Sim, em outubro.
Em outubro Lenine foi sem dúvida oportunista, porque viu ali o momento em que podia e tinha de tomar o poder – se os bolcheviques não o fizessem, dizia, seriam os contrarrevolucionários a fazê-lo. Os bolcheviques sempre acreditaram em duas coisas: na necessidade de organização e de estarem preparados para a ação. Muitos dos que seguiram Lenine em outubro eram pessoas prontas para a ação, oficiais que foram subindo de patente, tinham capacidade de organização, sabiam usar uma arma e eram profundamente ideológicos. O que torna os bolcheviques diferentes penso que é isso: a organização e estar pronto para ação.
E foi com essas duas armas que esta pequena fação conseguiu conquistar o poder e estendê-lo ao vastíssimo território da Rússia?
Acho que sim. Lenine repete muitas vezes que apenas precisam de uma pequena força para tomar o poder do Estado, depois o que é distintivo na sua ideologia prática da revolução é que não precisas de um movimento social alargado para fazer a revolução, precisas do poder do Estado e usas a ditadura para exterminar os teus inimigos durante a Guerra Civil. A própria Guerra Civil constrói o teu poder de base, porque polarizas a sociedade – ‘quem não está connosco é um inimigo do povo’ – extermina-los ou manda-los para o Gulag e crias uma mentalidade de ‘Eles contra nós’. E ao criarem uma classe de comissários, uma classe de burocratas e uma classe de militares, deixaram de precisar da classe trabalhadora. Esse é o elemento distintivo da revolução leninista e torna-se o modelo para as revoluções nos países do Terceiro Mundo. Não têm uma classe trabalhadora. Mas conseguem arranjar uma pequena força militar para tomar o poder e a partir daí aniquilar a oposição.
Não lhe parece um paradoxo que um dos países mais retrógrados da Europa tenha sido o laboratório de uma das experiências sociais mais ousadas de sempre?
Por que acha um paradoxo?
Porque foi imposto um modelo ultramoderno a uma população que tinha crenças e costumes quase medievais. Foi como se tivessem saltado várias etapas do desenvolvimento natural da sociedade.
Mas essa é a essência da revolução, é esse salto. E é isso que a torna tão especial: rompe com a ortodoxia marxista, que vê o socialismo como algo que evolui gradualmente. Aqui a revolução muda o próprio ritmo da História. Quanto ao atraso de que fala, talvez até tenha tornado as coisas mais fáceis. Especialmente se tiver em linha de conta que havia uma propaganda do Estado eficiente e muito baseada em imagens que veiculavam ideias religiosas do poder.
Poderá ter sido por causa desse salto que a revolução redundou numa enorme tragédia?
Sim. Aliás penso que foi essa a conclusão a que Lenine chegou nos últimos anos – que a Rússia não tinha classes educadas, classe política, instituições, capacidade técnica, não tinha as premissas culturais necessárias para construir o socialismo. Nos seus últimos escritos, Lenine diz que têm de aprender a governar, não a impor pelo terror.
Qual o episódio mais negro destes anos 1917-1924? Os atos de canibalismo, por exemplo?
Sim, há muitos episódios por onde escolher. A guerra civil, que é tantas vezes ignorada, e que culmina na grande fome, é bastante negra. As heranças disso são muito profundas.
Rovocaram traumas?
Sem dúvida. Escrevo mais sobre isso em Sussurros [editado em Portugal pela Alêtheia], o meu livro sobre a vida privada no tempo de Estaline. As heranças da repressão brutal dos anos 30 ainda lá estão, não há dúvida.
Quando vai à Rússia ainda vê marcas disso?
O que o Terror fez repercute-se por várias gerações. Os que viveram o Terror durante a sua infância, com os pais reprimidos, ensinaram aos seus filhos certas formas de estar. Comportamentos como ‘não se fala de certas coisas em público’, ‘não se fala em nomes’, ‘não se questiona a autoridade’, ‘para se sobreviver não se pode pensar em certas coisas’ são legados do período soviético. E a aceitação generalizada da violência do Estado como uma coisa necessária. De acordo com uma sondagem, 70% dos russos pensam que a Tcheka [polícia secreta soviética] defendeu a sociedade. Mesmo sabendo que durante o consulado de Estaline 20 milhões de pessoas foram mortas.
O Fim do Homem Soviético, de Svetlana Alexievitch, contém o depoimento de um homem que foi detido e sujeito à mais terrível violência física e psicológica. E no entanto o seu último desejo foi morrer como comunista, com uma bandeira do partido a cobrir o caixão.
Encontramos imensos exemplos desse tipo de atitude. Quando reunimos testemunhos do período soviético para a Memorial Society, encontrámos muitos reprimidos, ou com histórias horríveis na família, que só queriam ser aceites como cidadãos soviéticos. Talvez procurassem algum significado para as suas vidas. É difícil aceitar que se sofreu para nada. Se a família foi vítima de um erro ou sofreu, mas havia um desígnio maior que serviram, já pode ter alguma justificação. O que fariam se aceitassem que o seu sacrifício não tinha servido para nada? Talvez cometessem suicídio.
Creio que já foi acusado de ser um historiador conservador.
Já fui acusado de tanta coisa!
Onde se situa politicamente? Tem algum parti pris contra o comunismo?
Não, não tenho. Acho que tenho uma mentalidade receptiva, mas cética em relação a tudo. Politicamente situo-me no centro-esquerda, mas é difícil dizer o que isso significa nos tempos que correm. Em termos historiográficos não penso que possa ser facilmente catalogado. Já me acusaram de ser conservador, um revisionista, membro da escola totalitária, blá, blá, blá. Não me importa o que pensam que sou. Faço o que quero e ponto final.
A Tragédia de um Povo é um livro enorme. Conta-nos no prefácio que demorou seis anos a escrevê-lo. O que fez no dia em que terminou o livro? Foi celebrar?
Nunca tive essa sensação de ‘coloquei o último ponto final, agora vamos beber uma cerveja e festejar’. A minha mulher costuma referir o momento em que terminei a minha dissertação de doutoramento, em 1987. Passei-a à máquina porque naqueles tempos não tinha computador. Acho que passei a noite toda acordado a datilografar o último capítulo e ela foi-me encontrar de manhã na lavandaria [risos]. Não lavava a roupa há seis meses, por isso fui à lavandaria. Esses são os momentos de que nos lembramos.