Cantora, dançarina, cortesã e considerada a primeira estrela da história do cinema, Caroline Otero fez uma carreira fulgurante alicerçada na sua beleza, adotando até o nome artístico ‘La Belle Otero’. Fez tournées pelos teatros da Europa e dos Estados Unidos, e foi amante de reis e financeiros. Acumulou uma fortuna descomunal, que acabaria por esbanjar no casino de Monte Carlo. Retirou-se da sociedade quando a sua beleza ainda estava no auge e, já perto do final da vida, terá dito: «É preciso aprender a partir os espelhos».
Do Outro Lado do Espelho, a exposição temporária há muito idealizada por Maria Rosa Figueiredo e que pode ser vista até 5 de fevereiro no Museu Calouste Gulbenkian, resulta também dessa ambivalência e de uma relação de «ódio-amor», como a própria reconhece, com este objeto. «O espelho faz parte da minha biografia pessoal», afirma a conservadora. «Tinha dois irmãos, mas eram muito mais velhos, por isso era praticamente filha única, de pai ausente. E desde pequenina via-me e conversava imenso com o espelho». Quando, aos 14 anos, ingressou num colégio interno, levou consigo um livrinho com mensagens de amigas. Rosa cita de cor uma delas: «És um pouco peneirenta mas isso não importa. Quando olhas ao espelho dizes ‘Estou muito esquisita’ mas eu continuo tua amiga’».
A ideia de uma exposição sobre o espelho na arte foi-se formando na sua ideia ao longo das mais de quatro décadas em que trabalhava no Museu Gulbenkian. «Viajei muitas vezes a levar obras e a trazer, também viajei por mim, e sempre me atraíram quadros com espelhos. Fui comprando postalinhos, fui juntando e pensei: ‘Isto dava uma belíssima exposição’».
Depois de aprovada pelo presidente da fundação, e ao fim de vários «protelamentos», a exposição concretiza-se finalmente, com Maria Rosa Figueiredo já reformada. Mas traz uma novidade. «Isto era uma exposição de arte antiga. Com a chegada da nova diretora e a junção das duas coleções pediram-me que misturasse arte contemporânea com arte antiga. Para isso apareceu a Leonor [Nazaré] na minha vida, o que foi maravilhoso, porque sozinha não conseguia de maneira nenhuma descobrir aquelas obras».
Do Outro Lado do Espelho é composta por cinco núcleos, que oferecem cinco diferentes olhares sobre este objeto: ‘O Espelho Identitário’ – sobre a forma como vamos à nossa procura no reflexo e nos reconhecemos ao espelho; ‘O Espelho Alegórico’ – sobre «os vícios, virtudes, qualidades, artes e ciências» que se têm representado através deste símbolo; ‘A Mulher em Frente ao Espelho: A Projeção do Desejo’ – sobre o espelho como elemento essencial da toilette feminina; ‘Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem’ – uma reflexão sobre a possibilidade de a imagem refletida no espelho nos «trocar as voltas» e não corresponder à realidade; e finalmente ‘O Espelho Masculino’. «O espelho funciona como um dispositivo tanto físico como psicológico, qua fala da juventude e da velhice, da ilusão e da deceção, da verdade e do engano», escreve a diretora do museu no catálogo.
Vaidade ou pureza?
São 69 (um «número-espelho», como nota Maria Rosa Figueiredo com satisfação) as obras presentes, desde um magnífico retrato de Whistler (A Rapariga Vestida de Branco, de 1864), a obras contemporâneas que tendem a introduzir o sentido de humor na exposição, como Você Faz Parte… (2001), do brasileiro Nelson Leirner, em que o visitante é convidado a ver o seu rosto refletido num espelho junto a vários focinhos de primatas.
A obra mais antiga é uma Vanitas do flamengo Jan Sanders van Hemessen, de 1535, em que no lugar do reflexo surge uma caveira, para lembrar a futilidade e efemeridade da beleza e até da própria vida. De resto, o espelho é comummente conotado com a vaidade, as aparências (que nele aparecem refletidas), a superficialidade e até o engano (porque apresenta o reflexo invertido). Leonor Nazaré, curadora da coleção moderna, explica no entanto que há outras leituras possíveis, chamando a atenção para «o duplo sentido da palavra reflexão: no sentido da imagem que é refletida e no sentido de pensamento». Aliás, «originalmente, especular [do latim speculum, ‘espelho’] era observar o céu e os movimentos relativos das estrelas, com a ajuda de um espelho», explica o Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Segundo a mesma obra, no Japão este «é um símbolo da pureza da alma, do espírito sem mancha, da reflexão de si mesmo na consciência».
O espelho na arte
Nos contos de fadas, os espelhos possuem frequentemente propriedades mágicas – é o caso do da Branca de Neve; nos desenhos animados, surgem como objetos protetores, que refletem e afastam feitiços ou influências maléficas. E ainda fazem parte do imaginário popular, havendo a superstição de que partir um espelho provoca sete anos de azar.
Objeto repleto de simbolismo e significado, o espelho sempre foi motivo de fascínio para o homem – desde as crianças que veem pela primeira vez a sua aparência a criadores ou artistas. Surge na mitologia – o deus Narciso, ao ver-se refletido nas águas do Estiges, ficou enfeitiçado pela sua própria beleza, provocando a sua perdição –, na literatura (Lewis Carroll, Jorge Luis Borges), no cinema ou na história da arte.
Jan Van Eyck colocou um espelho convexo no centro do seu célebre retrato O Casal Arnolfini; Parmigianino retratou o seu rosto deformado refletido por um destes espelhos; Velázquez recorreu a espelhos (nas Meninas ou n’OEspelho de Vénus) para mostrar que tinha consciência de que a própria pintura é um jogo de aparências.
Evidentemente, nenhuma destas pinturas viajou até Lisboa para participar na exposição da Gulbenkian. Mas isso não belisca a proposta sobre o reflexo e a reflexão, a ilusão e a verdade, o original e o duplo, a superfície e a profundidade, a imagem e a realidade, que é feita em torno deste tema. E, se não há obras-primas mundialmente célebres para atrair enchestes, há outras – se bem que de qualidade desigual – que justificam uma visita ao Outro Lado do Espelho.