Tinha apenas 40 anos quando a ditadura o fez dar mecha às solas e partir para o Brasil. Com Portugal e a cultura portuguesa manteve sempre uma relação difícil que um célebre verso de Catulo poderia resumir muito: “Odi et amo”.
Nasceu em Lisboa, há 98 anos, precisamente no dia de finados, mas bem poderia dizer-se que nasceu num dia demasiado irascível para caber no Zodíaco. Não engolia fúrias, não calava revoltas, tão-pouco sufocava o sarcasmo, que nele é ainda uma forma superior de expressão literária. E também não se resguardava o autor de “Peregrinatio ad Loca Infecta”, um dos seus livros mais emblemáticos, em varandins de ocasião, lugares amenos ou simpatias de conveniência. Jorge de Sena, como escreveu o “Times” por altura da sua morte, a 4 de Junho de 1978, em Santa Bárbara, na Califórnia, foi sempre na literatura portuguesa uma “espécie de formidável touro, à solta num armazém de loiça”.
Lidou com belas peças, figuras de pés de barro, a “vil canalha”, e também com tempestades; semeou alguns ventos, bonanças nunca as viu, nem mesmo depois do 25 de Abril. A ideia do regresso com que tanto terá sonhado ainda chegou a entusiasmá-lo, mas depressa se desencantou. Por cá, ninguém o esperava, ninguém sentia a sua falta, ninguém precisava de um tal vulto – certamente um dos maiores da literatura e da cultura portuguesas do século XX – no “Reino da Estupidez”. A figura deitaria demasiada sombra e desconvinha aos estrategas das letras. Restava-lhe, pois, exacerbar a relação de amor/ódio com Portugal e assumir o destino trágico de Camões, o seu grande interlocutor, por ele resgatado ao academismo e à “admiração paralítica”. Tudo o resto – descasos, invejas, mágoas, desapegos – foi sem perdão.
Na escrita investiu uma avultada soma de energia. Escreveu com o furor de quem teme morrer no dia seguinte, ferveu raivas, perturbou – o talento, a inteligência e o saber enciclopédico perturbam. E não poupou nos coices. Nem a Academia de Estocolmo escapou, apelidada de “chafarica” no justo momento em que alguns admiradores se preparavam para o propor a candidato ao Prémio Nobel. Sena afrontou a mediocracia portuguesa, deu porrada à “literocambada”, essa que, tantas vezes escorada em reputações de cacaracá, não cessou de se unir e multiplicar, parasitando as instituições, trocando favores, permutando postos, servindo-se dos prémios que rodam na mesa do despudor, e que, ao invés de prestigiar, acabam a manchar-lhe a caderneta das glórias académicas. “Dói-lhes/ o pontapé no rabo? Hão-de apanhar/ ainda muito mais – no grande estilo / com que em milénios a poesia deu / os pontapés devidos a uma tal cambada”, escreve no poema “Provavelmente”.
Bastou-lhe o primeiro livro, “Perseguição” (1941), ao qual fez seguir “Coroa da Terra” (1947) e “Pedra Filosofal” (1950), para que a crítica logo o considerasse “infinitamente mais inteligente que poetas propriamente ditos”. Não era um elogio, antes a expressão de uma incompreensão. Hermetismo, cerebralismo, intelectualismo é a tríade que há-de perseguir caninamente Jorge de Sena, geração após geração. “Não é propriamente” – escreve num poema de “Visão Perpétua”, referindo-se à crítica – “que eu seja a caravana / e aquela tropa os cães das gerações / Oh não. Nem eu camelo, nem eles só cães”.
Na verdade, a sua poesia, com uma arquitectura complexa, capaz de articular intimamente a consciência clássica da construção e a ousadia da transgressão, perturbava menos pelo que era do que pelo que não era. Não era um lar novo, fresco e matinal onde não bate uma sombra desiludida e tudo é paixão concentrada, calmaria e aves contentes. Mais interessada em indagar a paisagem humana, sempre dispensou tanto a colaboração da natureza como o lirismo objectivo e cantabile: “Que caçarei da natureza mais/ que humanidade em ruas de cidade?”.
Não era uma casa caiada, asseadinha, exaltada na sua beleza patriarcal, abrigando pretéritos saudosismos. Espaço de cruzamento de culturas das mais desvairadas latitudes, objecto de pesquisa poética, a rever mitos e a propor contra-mitos, não pretendia ser a expressão da alma do povo nem a guardiã da moral, qualquer que ela fosse, dos bons e dos brandos costumes. E bastará lembrar aqui a sequência poética “As Evidências”, apreendida temporariamente pela PIDE sob a acusação de subversão e pornografia. Apressou-se Sena a acrescentar, naquele seu tom sarcástico capaz de dar conta de uma PIDE pouco sensível a cambiantes: “E para dizer a pura verdade evidente era realmente subversivo e, se não propriamente pornográfico, sem dúvida que respeitavelmente obsceno”.
Consciente da impossibilidade de dissociar inteiramente um autor do seu tempo histórico e estético, desmistificando, de resto sobre o seu próprio exemplo, a ultrapassada concepção da originalidade absoluta, sempre fez questão Jorge de Sena de se descolar das afinidades que a crítica lhe descobria. Situada na grande tradição do lirismo especulativo (Camões, Antero, Pessoa), os primeiros livros de poesia logo representam um confronto divergente com todas as poéticas do Modernismo.
Do seu inconformismo – político, social, cultural -, aliado a uma actividade de criação constante e intensa brotou uma obra vastíssima, repartida pela poesia e pela prosa de ficção narrativa desdobrada nas suas várias modalidades, pelo teatro, o ensaísmo, a crítica e a tradução (cerca de quarenta volumes), a investigação e a docência universitária, trocada pela Engenharia Civil, porque tudo vem cair na casa para que estava destinado.
Se tentássemos percorrer a sua obra, que só não se terá expandido mais devido à ação malévola “daquela de que todos se livram no enterro dos outros”, haveria que referir forçosamente o poeta de lirismo especulativo de “Metamorfoses” (1963) e “Arte de Música” (1968), duas coletâneas que abrem caminho a um profícuo diálogo entre as diversas áreas da actividade artística; o ficcionista de vários livros de contos – “Os Grão-Capitães”, “Antigas e Novas Andanças do Demónio” -, de “Sinais de Fogo” e de “O Físico Prodigioso”, alter-ego de Jorge de Sena; do dramaturgo-revisor de mitos de “O Indesejado (António, Rei)”, peça surgida em 1949, ao arrepio da larga tradição sebastianista portuguesa; do ensaísta de “Trinta Anos de Camões 1948-1978” e de “Fernando Pessoa & Cª Heterónima”; do cronista sarcástico de “O Reino da Estupidez” (vol.I, 1961; vol.II, 1978); do prefaciador assombroso e auto-irónico de “As Quibíricas”, de Grabato Dias; do polemista cultural e do humorista verrinoso, como bem testemunha essa coletânea de ressentimentos postumamente publicada que é “Dedicácias” (1999).
Deixou “Epitáfio”: “De mim não buscareis, que em vão vivi / de outro mais alto que em mim próprio havia./ Se em meus lugares, porém, me procurardes/ o nada que encontrardes/ eu sou e minha vida.” (“Fidelidade”).