Apesar disso, recentemente voltei a comprar um livro nessas condições. O anúncio bem avisava: «As primeiras páginas encontram-se sublinhadas a lápis» – mas resolvi ainda assim arriscar. ‘Apesar de tudo’, pensei, ‘o lápis pode apagar-se. Sobretudo se o proprietário do livro for consciencioso’. Como eu: em geral prefiro colocar uma pequena folha no interior do livro que estou a ler na qual vou tomando os meus apontamentos, mas de vez em quando também me dá para sublinhar partes dos livros que me interessam, de modo a facilitar a consulta posterior. E a verdade é que ainda há bem pouco tempo esse expediente se revelou utilíssimo, permitindo-me encontrar ideias-chave em pouco tempo e com relativa facilidade.
Digo ‘relativa’ porque normalmente o faço com tanto cuidado – para que a pressão do bico do lápis não deixe um sulco no papel – que depois tenho de andar à cata desses destaques subtis.
Não foi claramente esse o caso do livro recém-adquirido. Ao folheá-lo por curiosidade, verifiquei que os sublinhados saltavam à vista. Comecei a ficar assustado. As linhas não estavam apenas traçadas com vigor – eram também abundantes. Até à página 120 e tal era rara aquela onde a mão zelosa do anterior proprietário não tinha colocado qualquer marca, e nalguns casos os sublinhados eram quase integrais.
Apetece perguntar: para que servem sublinhados sem critério, que destacam tudo e não destacam nada? Trata-se de um mistério que não consigo resolver.
De imediato peguei numa borracha e pus mãos à obra. Tentei apagar os sublinhados com tanta fúria como aquela com que provavelmente foram feitos. Quem já passou por isso sabe que, quando não se segura com firmeza, volta e meia o movimento da borracha puxa a página, que fica dobrada. Sempre que isso acontecia sentia-me ainda mais frustrado e irritado, mas essa irritação dava-me energia para continuar a minha tarefa.
Não sei quantas linhas terei apagado, mas à média de dez por página – o que não me parece exagerado – terão sido mais de mil. O último risco passava por baixo das seguintes palavras: «Podemos supor que». E ficava por aí. De um momento para o outro deixei de ficar irritado com o anterior proprietário. O que lhe teria acontecido? Devia estar a sentir-se mal para sublinhar esta frase inconsequente! Depois ocorreu-me que podia não ter sucedido nada de grave. Talvez tivesse apenas adormecido a meio da leitura. E decidido desfazer-se daquele livro que lhe dava sono.