Agiram de forma concertada e aproveitaram-se da própria estrutura hierárquica militar para «obter proveitos indevidos». É assim que a acusação do Ministério Público (MP) caracteriza as atividades de um grupo de 86 militares e civis que lesaram o Estado português em, pelo menos, 2,5 milhões de euros. Em causa, um negócio que envolvia quase todas as messes da Força Aérea. Os fornecedores forjavam faturas para sobrefaturar ao Estado e tanto os militares como os empresários conseguiam assim uma renda extra.
Um ano depois de a Polícia Judiciária ter realizado buscas nas instalações da Força Aérea (FA) no âmbito da Operação Zeus, o MP deduziu na semana passada a acusação, mantendo a prisão preventiva para 13 militares e domiciliária para outros cinco, alguns de alta patente. Os arguidos são acusados de corrupção passiva e ativa agravada, falsificação de documentos, falsidade informática e associação criminosa.
O esquema continuado de sobrefaturação de bens alimentares às messes da FA, que envolvia militares da Direção de Abastecimento e Transportes (DAT), militares das messes e empresários e 15 empresas fornecedoras de alimentos, durou pelo menos dez anos, entre 2006 e 2016. Em paralelo, os militares também obtinham ganhos indevidos com a realização de eventos à custa do erário público, como peregrinações a Fátima e almoços com elementos da administração Toyota Lexus.
Os eventos eram custeados pelos participantes mas atribuídos ao orçamento da FA, sendo que os arguidos militares distribuíam o dinheiro entre si. Este esquema terá, segundo a Polícia Judiciária (PJ), lesado o Estado português em cerca de 10 milhões de euros. O despacho da acusação do MP, que data de 2 de novembro de 2017 e ao qual o SOL teve acesso, contabilizou formalmente 2,5 milhões de euros: dois milhões terão sido distribuídos ilicitamente pelos militares envolvidos e 500 mil euros pelos empresários e empresas.
O esquema
Segundo a acusação do MP, o esquema existia "desde data não apurada, mas, pelo menos, desde o ano de 2011". Inicialmente, mantinha-se nas camadas médias e baixas da hierarquia militar, nomeadamente nas messes das várias bases aéreas, mas quando os oficiais superior e general da DAT tomaram conhecimento "decidiram que também os próprios deveriam obter ganhos com tais situações".
Assim, os membros desta estrutura militar impuseram a todas as unidades ou militares que não apresentavam sobrefaturação que o fizessem, "aliciando e impondo a cada novo membro, normalmente oficial que chegava a uma messe, as entregas em dinheiro a favor da DAT". Em troca, os militares da estrutura não efetuavam controlos e verificações nas messes, permitindo, também, que os militares dessas unidades obtivessem elevadas quantias para proveito próprio.
O esquema atingiu proporções tais que "várias messes dispersas pelo país foram sendo abastecidas com géneros alimentícios que eram sobrefaturados posteriormente ao Estado Maior da Força Aérea", onde se incluem a Base Aérea 1 (Sintra), o Centro de Formação Militar e Técnica da Força Aérea (Ota), a Base Aérea 5 (Leiria), a Base Aérea 6 (Montijo), a Base Aérea 11 (Beja), o Aeródromo de Manobra 1 (Ovar), entre outras (ver mapa). Apenas as messes dos Aeródromos Militares de Tancos e Porto Santo não se envolveram no esquema. Por sua vez, as empresas fornecedoras de alimentos não tinham ligação direta à DAT, contactando apenas com os militares das messes, que as aliciavam a apresentar propostas de sobrefaturação.
As empresas eram escolhidas sobretudo por ajuste direto, permitindo aos militares controlarem facilmente as firmas que lhes forneceriam os alimentos, alinhando no esquema.
Segundo a acusação, "cada membro desempenhava uma função, sem que todos tivessem conhecimento completo do esquema", algo característico de organizações criminosas profissionais. "Pelo menos a partir de 2011, o general Milhais de Carvalho transmitia as ordens ao coronel Jorge Lima e ao tenente-coronel Alcides Fernandes que por sua vez as transmitiam aos ‘homens de mão’, aqueles que davam a cara, os capitães da DAT, Carlos Dias e Luís Oliveira, sendo estes os interlocutores para fora da DAT", pode ler-se na acusação.
Ainda que o esquema estivesse muito bem definido e controlado, os militares corriam o risco de se depararem com a oposição dos comandantes das bases aéreas e, portanto, decidiram aliciá-los a participarem no conluio. Em troca de quantias em dinheiro, os oficiais superiores das bases aéreas alegadamente facilitavam as contratações das empresas ou não exerciam as suas funções de fiscalização hierárquica.
A acusação refere os casos da Base Aérea nºs, Montijo, com o oficial Jaques Tiago, e no Centro de Formação Militar e Técnica da Força Aérea, Ota, com os oficiais Paulo Sousa e Rui Oliveira.
Se as quantias em dinheiro já eram por si elevadas, a sobrefaturação "também gerava uma conta-corrente", permitindo aos militares trocarem alimentos "que não faziam parte dos concursos públicos", como "bebidas alcoólicas, camarão, carne de valor superior", por sua vez utilizados nos eventos especiais.
Contactada pelo SOL, a Força Aérea recordou "que as investigações eram, desde o início, do conhecimento de um núcleo restrito da estrutura de comando deste Ramo das Forças Armadas" e que colaborou "com total transparência, com as autoridades competentes na investigação".
A investigação
A acusação do MP afirma que o esquema de sobrefaturação remonta, pelo menos, a 2006. Contudo, as investigações apenas começaram na primavera de 2014, quando um empresário reformado, anteriormente envolvido no esquema, decidiu enviar uma carta anónima à PJ Militar.
As investigações não avançaram significativamente até a PJ civil ter entrado no processo. Aí, a investigação deu passos decisivos com a participação de um militar da Base Aérea n.º 5, Monte Real, que se infiltrou na rede criminosa. Todos os passos e contactos que fazia eram comunicados aos investigadores, ao mesmo tempo que o próprio reunia provas. Entre elas, recebeu envelopes dos fornecedores com cerca de 40 mil euros e fotografou e gravou conversas sobre o esquema.
A 3 de novembro de 2016, quinta-feira, pelas primeiras horas da manhã, cerca de 400 elementos da PJ, PJ Militar, Unidade de Perícia Financeira e Contabilística e da Unidade de Tecnologia e Informação da PJ realizaram buscas nas instalações da FÃ e 80 buscas domiciliárias. No final do dia, seis militares tinham sido detidos, incluindo um major, dois capitães e três sargentos. Nos meses seguintes, as investigações levaram à detenção de mais 16 militares e de quatro empresários de empresas fornecedoras. Entre os quais encontravam-se um coronel, um tenente-coronel, um major, três capitães, cinco sargentos e um general.
As investigações apenas começaram em 2014, mas o Público avançou que a hierarquia da FA poderia ter investigado os desvios de verbas muito antes, quando, em 2009, um sargento da Base Aérea afirmou, no âmbito de um processo disciplinar, existir um esquema montado há muitos anos não apenas nas messes da sua unidade, mas também noutras cantinas da FA.
Segundo o mesmo jornal, o tenente-coronel Carlos Candeias afirmou ao MP ter entregue em mão o processo disciplinar com as respetivas declarações ao tenente-general José Maria Pessoa, então comandante da FA. Contudo, as declarações nunca conduziram à abertura de um inquérito interno. A FA afirmou ao SOL que "o processo foi desencadeado pela Força Aérea, juntamente com a Polícia Judiciária Militar, em finais de 2015", não respondendo, porém, às questões sobre a denúncia do sargento da Base Aérea de Beja.