Notícia do SOL assusta homens de Salgado

Felícia Cabrita investigou em Benguela movimentos suspeitos de dinheiro entre a família de Sócrates e o grupo BES. A jornalista não passou despercebida aos homens de Ricardo Salgado, que a chegaram a confundir com Ana Bruno.

Em 2015, o SOL foi a Benguela, Angola, em busca das famosas salinas que tanto dinheiro tinham dado a Carlos Santos Silva.

Nessas buscas apurou-se que os terrenos valiam muito menos do que o valor pelo qual tinham sido comprados pela ESCOM, uma empresa do Grupo Espírito Santo (GES). E, além disso, o nome do empresário da Covilhã não aparecia na documentação relativa ao negócio. Estas conclusões foram publicadas no SOL em várias reportagens – dando origem a um corrupio de telefonemas entre algumas das figuras mais ligadas a este processo e que se sentiram comprometidas pelos textos.

A operação teve por objetivo a ocultação de passivos do grupo de Ricardo Salgado através de operações de venda fictícias. Assim, em apenas um dia, a dívida da ESCOM foi transferida para cinco empresas desconhecidas e sem qualquer atividade operacional.

Este esquema envolvia o BESA, que concedeu crédito às cinco empresas, num total de mais de 500 milhões de dólares. Com este dinheiro, as empresas adquiriram ativos à ESCOM por valores empolados, acima do preço real de mercado.

Uma destas sociedades-veículo era a Enignimob, que comprou à família Pinto de Sousa os 30% que lhe faltavam dos terrenos em Benguela. Quando o SOL aqui esteve, este terreno continuava repleto de lixo, sem qualquer projeto. A jornalista Felícia Cabrita falou com várias pessoas ligadas às salinas, que não conseguiam justificar o negócio por detrás da aquisição destes terrenos, que acabaram por ser deixados ao abandono.

 

Felícia Cabrita disfarçada de Ana Bruno?

Luís Horta e Costa, ex-administrador da ESCOM e irmão de Rui Horta e Costa, também arguido na Operação Marquês, tomou conhecimento da notícia através do jornalista do Expresso Micael Pereira. Nesta conversa, surge o primeiro rumor: é referido que Felícia Cabrita esteve em Angola disfarçada de Ana Bruno (que fora administradora do SOL mas já tinha saído), tentando contactar com várias pessoas ligadas ao negócio das salinas.

«Micael Pereira (MPE) – A Felícia Cabrita foi a Angola e tenho a ideia que…

Luís Horta e Costa (LHC) – Disfarçada de Ana Bruno?

MPE – (Gargalhada) Talvez.

LHC – Nem sabia que isso era possível. Ouvi dizer que ela andava por lá a dizer que era a Ana Bruno».

A partir daqui, Micael Pereira faz uma descrição da reportagem do SOL, constatando que o dinheiro nunca saiu do universo GES. Horta e Costa tenta explicar o negócio, admitindo que não sabia de onde vinha o dinheiro das sociedades que quiseram comprar os terrenos, nem quem eram as pessoas por detrás das mesmas: «Nós não sabíamos. Quando vendemos isso foi a determinadas sociedades, percebes? Se tinham financiamento ou não, não faço a menor ideia».

Mas este era exatamente o ponto mais frágil do raciocínio:

«MPE – Ok. Mas essas sociedades tiveram que ir buscar financiamento a algum lado.

LHC – Isso é que eu já não sei. Isso é melhor perguntar ao Dr. Salgado.

MPE – Pois, pois, essa parte é que é… a mais estranha.

LHC – A situação é a seguinte: aparece-me uma sociedade representada por um senhor qualquer – que nessa altura até era uma pessoa do Grupo Espírito Santo, que era o Lourenço Lobo –, que dizia que tinha interesse em comprar os projetos imobiliários da ESCOM, porque a Espírito Santo International tinha muitos ativos imobiliários… Depois eu percebi por que é que eles fizeram isso…

MPE – É por isso…

LHC – Percebi o que eles queriam. Queriam dizer que tinham ativos imobiliários que não estavam consolidados no balanço da Espírito Santo International e, portanto, que a Espírito Santo International valia muito mais do que aquilo que era considerado.

MPE – Portanto, aquilo não saiu do universo Espírito Santo, na verdade, não é?»

 

Notícia é ‘maldosa’

Apreensivo, Horta e Costa liga a João Salvado, responsável pela ESCOM Imobiliária, pedindo que lhe explicasse o que estava em causa.

«João Salvado (JSA) – Essencialmente, a notícia é tão maldosa quanto isto: diz que aquilo foi vendido por 113 milhões de dólares, com uma valorização muito para lá daquilo que era razoável, uma valorização que pode ser considerada fraudulenta e que serviu para que o BES tivesse financiamentos do BESA, para libertar dívida da ESCOM perante o Banco de Portugal. Porque o Banco de Portugal andava a chatear o BES por causa da dívida…

LHC – Mas aquilo foi vendido por quanto?

JSA – Foi vendido por esses valores. Os valores [da notícia do SOL] estão corretos.

LHC – E é um valor pornográfico?

JSA – Não. Ó Luís… não é nada! Então para um empreendimento que tem uma licença de construção emitida, que tem uma área de construção brutal, aquele valor está perfeitamente… adequado. Eles é que não sabem os contornos das situações. A grande vantagem que nós tivemos ali foi sempre uma… Como você sabe, uma das prioridades que eu dei foi ter os projetos, os terrenos com projeto aprovado…

LHC – Sim, sim.

JSA – Nós tínhamos uns projetos bons. E essa valorização, e o facto de termos os projetos aprovados e as licenças emitidas, é que valoriza os terrenos. Agora se começou ou não começou [a obra]? É pá, não começou porque, olhe, por força destas circunstâncias todas não começou a tempo. Mas podia ter começado e é um empreendimento que rondará sempre perto de mil… de… mil milhões… de dólares. Em termos de investimento e de movimentação do projeto. Não… A notícia… Ouça1, a notícia é maldosa, pá! Estou-lhe a dizer, a notícia é maldosa!

LHC – Não, isso eu não tenho dúvidas. Mas não sei explicar…

JSA – Ah… Mas é que eu sei tudo, eu conheço tudo, pá! Então que é isso?

LHC – Mas este é um gajo sério: Micael Pereira. Se o gajo lhe ligar, você explica-lhe só isso, e diga-lhe: ‘Olhe, é uma notícia completamente tendenciosa, é um projeto com licença aprovada, está tudo direitinho, nós vendemos aquilo com valores…

JSA – Não, não. Eu não tenho problemas, pá.

LHC – …de mercado’.

JSA – Não tenho problemas.

LHC – ‘Se a empresa que comprou se financiou no BES ou no BESA, não faço a menor ideia, também não tenho que saber’. É que eu não sei se eles se financiaram no BESA ou não se financiaram no BESA…

JSA – Também não sei.

LHC – Nem tenho de saber. Sei lá! Se um gajo me quer comprar um apartamento, sei lá de onde vem o dinheiro do gajo.

JSA – Claro. Pagaram-nos no BESA, mas sei lá se eles foram buscar financiamento ou se não foram! Não faço a mínima ideia.

LHC – O que se fez foi tudo o que recebeu. Nós abatemos a nossa dívida no BESA.

JSA – Como é evidente. Limitámo-nos a isso».

 

Hélder Bataglia também tem dúvidas

Mas o próprio João Salvado tinha medo das próximas reportagens do SOL e assegurou a Horta e Costa que tinha tudo controlado: «Ela andou lá durante uma série de dias, pá, nós estávamos a controlar tudo. Tanto que eu estou a admitir que ela agora, no seguimento disto… Porque ela disse na notícia de hoje que isto é apenas o primeiro capítulo de uma novela. Eu estou a admitir que ela vá bater à porta a Luanda. De certeza absoluta que ela vai lá bater, não tenho dúvidas absolutamente nenhumas. E é evidente que nós não a vamos receber ou, na pior das hipóteses, se a recebermos é no sentido de lhe dizer. ‘Minha senhora, tudo aquilo que se passa é tudo invenção vossa, queira fazer o favor de estarem calados’».

Felícia Cabrita enviou, de facto, perguntas a Hélder Bataglia, líder da ESCOM, pedindo esclarecimentos sobre o negócio em causa. Sem respostas, o jornal avançou com o artigo, o que deixou Bataglia nervoso. Agora, a sua estratégia passava por colocar alguém da empresa em contacto com Felícia Cabrita para «esclarecer» as coisas, negando qualquer envolvimento em negócios ilícitos.

«HB – Era só esclarecer, porque depois… Eu posso não gostar e assim, se esclarecesses, já não fazia. Era isso.

LHC – Se esclarecesse, já não quê…?

HB – Se esclarecesses a outra… era diferente. Porque aquilo não tem nada a ver connosco. Como tu já percebeste, não é? Aquilo tem zero a ver connosco, como viste pelas perguntas, não é?

LHC – Sim, vi. Por isso é que eu acho… Por que é que a gente tem que esclarecer? Por que é que eu tenho que dar satisfações a uma gaja sobre contratos privados?

HB – Exatamente.

LHC – Eu não responderia».

 

Santos Silva, o empresário desconhecido

Segundo a investigação da Operação Marquês, esta venda não passou de um ‘negócio fantasma’, cheio de artimanhas para esconder quantias avultadas. Era, aliás, através deste negócio que Carlos Santos Silva – o homem que o Ministério Público afirma ser o testa-de-ferro de José Sócrates – justificava a proveniência de parte dos milhões que detinha na sua conta pessoal.

Durante o seu depoimento no DCIAP, Santos Silva disse que o dinheiro que recebeu de José Paulo Pinto de Sousa, primo de Sócrates, representava dividendos de uma empresa de exploração de salinas que manteria na região de Benguela, em sociedade com ele. Esta versão voltou a ser referida recentemente pelo ex-primeiro-ministro, na entrevista que deu à RTP após a saída da acusação. «Eu sou alheio a esse negócio», defendeu-se.

No entanto, como o SOL revelou em 2015, à data em que ocorreu esta transação o nome de Santos Silva não surge nos registos oficiais angolanos respeitantes a estes terrenos. E através das escutas telefónicas recolhidas pelos investigadores, é possível ver que ninguém sabia do envolvimento de Carlos Santos Silva nestes negócios.

Numa conversa com o jornalista Micael Pereira, Horta e Costa confessa que não sabe de onde vem o nome do amigo de Sócrates:

«MPE – Como é que aparece aqui o Carlos Santos Silva, o amigo do Sócrates, neste negócio?

LHC – Não faço a menor ideia. Nunca tinha ouvido falar do Carlos Santos Silva na vida.

MPE – Ah…

LHC – Mas aparece no negócio das salinas?

MPE – Sim. Isto é um bocado estranho, mas aparece.

LHC: – Não sei».

Numa outra conversa com João Líbano Monteiro, dono de uma agência de comunicação em Lisboa, Luís Horta e Costa reitera esta informação: «Quando a ESCOM comprou à família Pinto de Sousa… ninguém sabia, tenho a certeza absoluta, que o Santos Silva era lá sócio. Portanto, aquilo comprou-se à família Pinto de Sousa, uma área de salinas junto a Benguela, pá, a um quilómetro de Benguela, que era para se fazer um projeto imobiliário».

 

‘Por que é que o Salgado fez aquela m****?’

Nessa mesma conversa, o administrador da ESCOM torna clara a identidade do verdadeiro cérebro deste esquema:

«LHC – Aquela notícia que ela [Felícia Cabrita] põe hoje no SOL tem algum fundamento…

João Líbano Monteiro (JLM) – Sim?

LHC – …verídico. Mas que, graças a Deus, nos exclui de qualquer responsabilidade…

JLM – Boa!

LHC – …porque fizemos tudo direitinho. Eh, pá, depois tem aquelas explicações que eu não te consigo explicar. Por que é que o Salgado fez aquela m****, não é?

JLM – Hum, hum. Exatamente.

LHC – Por que é que o gajo nos manda vender ativos imobiliários a umas sociedades indicadas pelos gajos? Recebemos dinheiro dessas sociedades, pagámos o que devíamos ao BES Angola, mas pelos vistos essas sociedades, que nós não sabíamos a quem pertenciam, eram financiadas no BES Angola. Eu sei por que é que ele fez isso, hoje em dia sei, na altura não sabia. Mas nós só procedemos à alienação desses ativos com autorização expressa do acionista maioritário.

JLM – Boa. Boa».

O Ministério Público acredita que estes seis milhões de euros passaram por Hélder Bataglia, José Paulo Pinto de Sousa e Carlos Santos Silva, mas tinham como último destino os bolsos de José Sócrates.

O dinheiro vinha do ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo (GES) e tinha sido transferido para recompensar o então primeiro-ministro pela sua postura em relação à OPA da Sonae à PT, um negócio que poderia acabar com o poder do GES dentro da operadora portuguesa.

 

Felícia Cabrita e Joana Marques Alves