Estamos no tempo da caça às bruxas. De repente, aparece uma jogadora de futebol que diz: «O Blatter apalpou-me o rabo há quatro anos», depois vem uma respeitável senhora acusar um famoso produtor de Hollywood de lhe fazer um convite indecente há 30 anos, mais à frente um fulano acusa um conhecido ator de o assediar há dez. E assim se vão desonrando pessoas, com razão ou sem ela…
O conceito de ‘assédio sexual’ é relativamente recente e carece de esclarecimento. A primeira vez que me lembro de se falar nisso abertamente nos jornais e na TV foi a propósito de um caso que ocorreu na Nestlé portuguesa pouco antes do ano 2000 – e que afetou o bom nome da marca.
Em 2005 publiquei um romance – Jardim Colonial – em que o assédio estava no centro da história. Uma jovem empregada de uma tipografia nos arredores de Lisboa era perseguida pelo chefe, que a chamava constantemente ao gabinete e provocava encontros ‘casuais’. Incomodada, a rapariga acabou por se despedir, vindo a casar mais tarde com um empresário rico. Um dia, a tipografia foi posta à venda – e o empresário comprou-a, para fazer uma surpresa à mulher. Esta assumiu então o lugar de administradora, vindo a reencontrar o antigo chefe, que ainda lá trabalhava. E verificou que o homem continuava fascinado por ela.
Aí, foi assaltada pelos remorsos: percebeu que o chefe não a perseguira maldosamente no passado, simplesmente estava apaixonado por ela. Sempre estivera apaixonado por ela. E ela acabou por deixar o marido e ir viver com o fulano.
O conceito de assédio pressupõe uma situação de superioridade hierárquica ou outra. É indiscutível que um chefe (ou patrão) ‘assedia’ uma empregada se a pressionar para obter favores sexuais – porque está implícito que, se a mulher recusar, pode ser prejudicada profissionalmente.
O mesmo se passa quando um professor corteja uma aluna. Está em posição de vantagem. Mas o inverso será verdadeiro? Se uma aluna cortejar um professor para ter melhor nota isso também será considerado assédio? Acho que não, pois o professor pode rejeitá-la sem que daí lhe advenha qualquer prejuízo.
A caça às bruxas iniciada recentemente nos EUA e que tende a propagar-se a todo o Ocidente merece-me sérias reservas.
Numa magnífica crónica publicada na semana passada no SOL, Filipe Pinhal escrevia: «Se alguns dos acusados [de assédio] confessaram, isso inculpa-os – mas não chega para explicar a multiplicação dos casos, como se uma moda ‘assedial’ tivesse varrido os EUA, e parte da Europa, nos anos 80 e 90 do século passado.
Não estamos a falar da Roménia de Ceausescu – onde a polícia política encobria as sevícias a que Nadia Comaneci era sujeita para poder continuar a ir às olimpíadas. Os casos passaram-se na livre América, com milhares de jornalistas livres, que veriam no relato de abusos dos poderosos do cinema e da moda a oportunidade da vida.
Se foi possível apear o Presidente Nixon à custa das denúncias de um jornal, não seria mais fácil fazer sentar no banco dos réus um qualquer patrão do cinema?».
Muitas acusações de assédio feitas hoje chamar-se-iam no passado ‘lavagem de roupa suja’. Agora fala-se de ‘coragem’. E porquê? Porque se considera que podem levar os assediadores a temer as consequências e não ousar repetir a ‘gracinha’. E podem incentivar as jovens assediadas a reagir e a denunciar os predadores.
O objetivo é nobre. Mas não serão tão nobres as intenções de todas e todos os que têm vindo a público falar de casos de assédio passados com eles há anos ou décadas.
Como perguntava Pinhal, por que não se queixaram na época? Será que quiseram então beneficiar das vantagens do assédio? E querem agora beneficiar do protagonismo que as denúncias lhes dão?
De facto, algumas queixosas e queixosos parecem pôr-se em bicos de pés. «Vejam, sou tão desejável que este famoso me convidou para isto e para aquilo»… «Olhem para mim, que fui perseguida por aquele senhor importante!»…
E se há casos verdadeiramente escabrosos – e os piores provavelmente nunca se saberão! –, há outros muito duvidosos. Uma TV qualquer acusava há dias (com imagens) um ator de assédio, por ter posto há 10 ou 15 anos a mão no joelho de uma colega – apesar de ela dizer que não se sentira minimamente incomodada!
As denúncias de assédio foram elevadas à condição de espetáculo mediático. O tempo da Inquisição parece de volta, com outra roupagem. Caminhamos para uma sociedade policial, vigiada, fundamentalista, onde tudo nas relações humanas começa a ficar sob suspeita. É perigoso hoje dar um piropo, fazer um elogio, um inocente convite para almoçar.
O assédio sexual é uma coisa horrível. Mas não confundamos as coisas, metendo tudo no mesmo saco. Não roubem aos seres humanos o prazer do elogio, do piropo, do galanteio – pois isso faz bem à alma e alimenta o ego.