«Há uma descrição muito bonita dos primeiros cronistas que mostra a chegada dos navegadores [à ilha da Madeira]. Eles vão descobrindo as enseadas, as ribeiras, e chegam a uma área onde havia uma plataforma tão grande que podia ser aí instalada uma cidade. É isso que efetivamente acontece com a cidade do Funchal», explica Fernando António Baptista Pereira, um dos comissários da exposição As Ilhas do Ouro Branco. Encomenda Artística na Madeira – Séculos XV-XVI, que acaba de ser inaugurada no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Ao todo, exibe-se ali cerca de uma centena de peças, entre pinturas, esculturas, documentos e ourivesaria litúrgica.
O arquipélago da Madeira era já bem conhecido quando em 1418, no regresso de Ceuta, dois escudeiros do infante D. Henrique, João Gonçalves, de alcunha ‘Zarco’, e Tristão Vaz Teixeira, redescobriram «a misteriosa mancha húmida» – como lhe chama no catálogo Filipe Castro Mendes, o ministro da Cultura. Ali, os pássaros «vinham comer às mãos» e tudo remetia para uma ideia de paraíso virgem, onde a natureza permanecia no seu estado original desde a Criação.
Entre 1420 e 1425 arranca o processo de colonização: os capitães-donatários chegam acompanhados pela família, por um grupo de amigos próximos, mas também por gente de condição mais modesta e até antigos presos. Consigo trazem animais, sementes e plantas.
Balão de ensaio
«Há uma tarefa absolutamente ciclópica inicial de desbravar uma terra que tem uma densidade florestal absolutamente extraordinária», considera Francisco Clode de Sousa, também comissário da exposição e diretor do Museu de Arte Sacra do Funchal. Pela forma como o território foi organizado e ocupado, a Madeira serviu de «balão de ensaio do que será o Portugal da expansão primeiro atlântica e depois no Índico», considera. «No Brasil também vamos ter o sistema das capitanias, sistema ensaiado na Madeira».
A exploração agrícola obrigou à destruição parcial da natureza exuberante que brotava daquela terra – o que foi feito através de fogos, alguns dos quais duraram anos. Primeiro, plantaram-se cereais, mas rapidamente se impôs outra cultura que se revelaria bem mais rentável. A cana de açúcar «cresce de uma forma exponencial no último quartel do século XV. Era um produto escasso, muito caro e que será produzido em grande escala e vai fornecer algumas das mais importantes placas giratórias da Europa, chegando a regiões que vão até Constantinopla e passando pelos portos italianos», refere Clode de Sousa. «Os engenhos de açúcar resultam de um conjunto de novidades do ponto de vista tecnológico que são uma criação portuguesa – e madeirense», sublinha Baptista Pereira, «depois exportadas para todo o mundo».
A prosperidade proporcionada pelo açúcar atraiu muitos estrangeiros à ilha, que «desde cedo será uma espécie de cadinho cultural», continua Clode de Sousa. Um deles é Cristóvão Colombo, agente comercial de uma firma sediada em Lisboa. «Há muitos nomes ainda hoje destas famílias que chegaram como comerciantes de açúcar».
Pequenas maravilhas
A importação de dispendiosas obras de arte para a Madeira só foi possível graças às riquezas trazidas pelo açúcar e inscreve-se «naquilo a que chamamos a economia da salvação», nota Fernando António Baptista Pereira. «Como é que as pessoas garantiam a sua imortalidade ou a remissão dos seus pecados? Através da oferta à Igreja de pequeninas capelas, conventos ou, finalmente, de obras de arte». É nesse contexto que começam a aparecer, por vezes em capelas recônditas, pinturas flamengas, por exemplo, de nível excecional. Mas também ourivesaria.
«Temos nesta exposição algumas dessas peças que sobreviveram 500 anos, o que é extremamente raro a nível nacional. Muitas das peças de ourivesaria manuelina, por razões variadas, eram muitas vezes fundidas para transformar noutras peças», explica Clode de Sousa. «Felizmente não tivemos muitos dos dramas que aconteceram no continente», como o terramoto de 1755 ou as invasões napoleónicas, no início do século XIX. Um cálice do século XV, que o comissário descreve como «uma pequena maravilha», constitui um testemunho dessa sobrevivência.
«O período áureo das grandes encomendas artísticas situa-se nos primeiros 30-40 anos do século XVI. A partir daí há uma inversão da encomenda artística, as oficinas nacionais passam a ser privilegiadas», explica Baptista Pereira. Essa alteração corresponde a uma mudança de gosto, mas também ao declínio da indústria açucareira da ilha, suplantada pela concorrência do Novo Mundo. Ao ponto de, no final do século XVI, a Madeira começar a importar açúcar do Brasil para a indústria de frutas cristalizadas.
Baptista Pereira considera a última sala «uma espécie de resumo de tudo aquilo que estava na exposição através das peças mais exuberantes». Ali podemos ver a cruz processional de D. Manuel, um dos tesouros da ourivesaria manuelina. Na outro lado da sala figura um retábulo oferecido por Filipe II de Castela, neto de D. Manuel, que, na opinião do comissário, quis assim «imitar» e homenagear o seu avô.