As cheias de novembro de 1967 atingiram em cheio o regime. Foi a pior tragédia depois do terramoto de 1755. Morreram centenas de pessoas na região de Lisboa. Não se sabe ao certo quantas. Mas podem ter sido para cima de 700. A censura do Estado Novo acordou tarde, mas quando acordou foi implacável com o tradicional lápis azul. Fotografias de urnas e pessoas a chorar eram proibidas. Títulos com números de mortos também. Textos a falar na responsabilidade do governo na tragédia, censurados. A catástrofe atingiu os concelhos vizinhos de Lisboa, como Loures, Vila Franca de Xira, Alenquer, entre outros. E matou pessoas que viviam em bairros clandestinos ou em leitos de cheias. Mas a própria resposta à tragédia fragilizou o regime. Os meios de socorro foram escassos ou mesmo inexistentes em muitas aldeias e vilas. Foram os populares que recolheram os corpos, foram milhares de estudantes e outros voluntários que foram para o terreno ajudar as pessoas.
O regime falhou antes e falhou depois. Restavam-lhe a censura e a repressão. Mas enganou-se. A mobilização massiva dos estudantes veio dar ao movimento estudantil, uma alma que tinha sido perdida algures depois das crises de 1962 e 1965. Em 1967, as associações de estudantes estavam voltadas para dentro, preocupadas com assuntos curriculares das suas universidades e alguns interesses dos estudantes. Depois de 1967, tudo mudou. Os estudantes viram a miséria, as condições de vida de milhares e milhares de pessoas e não voltaram para o seu casulo.
As críticas ao regime, os movimentos anticoloniais e a formação de novas organizações políticas são, em grande medida, fruto da consciência política e social que os estudantes adquiriram nos dias em que andaram na lama a recolher corpos, a limpar casas, ruas e largos, e viram um regime a responder com a PIDE, a GNR e a censura. O movimento estudantil percebeu que o regime era fraco e que a luta podia acelerar a sua queda. Como, aliás, se verificou um ano depois por outros motivos, com a queda de Salazar da cadeira.
Mas se o ditador foi substituído por outro, de nome Marcello Caetano, o movimento estudantil em Lisboa e Coimbra ganhou uma força imparável. O Instituto Superior Técnico foi invadido pela PIDE e pela polícia de choque em dezembro de 1968, por ordem do fascista José Hermano Saraiva, mais tarde muito elogiado por ser um excelente contador de histórias.
Coimbra entra na guerra em 1969 e Lisboa acompanha de perto a agitação. A PIDE invadia associações, prendia dirigentes e a polícia de choque acampava em algumas universidades, como no Técnico, nos últimos anos do fascismo.
Os estudantes não estavam fechados nas universidades. Vinham para a rua, para o meio dos cidadãos, denunciar as atrocidades do regime, a repressão, a guerra colonial e as condições de vida de milhares de portugueses.
As cheias de 1967 despertaram milhares de consciências e mataram centenas de pessoas. E, mais importante do que isso, deram um forte contributo para queda do regime. Os dramas de Quintas continuam na memória de quem lá vive. Os dramas de Loures, Odivelas, Frielas não ficaram esquecidos 50 anos depois. O regime fascista foi abalado, Salazar caiu da cadeira e Marcello Caetano foi preso em abril de 1974. Triste para quem ganhou uma nova vida em 1967 é ver que, em pleno regime democrático, um governo de esquerda tenha deixado morrer 110 pessoas nos incêndios de junho e outubro. Com o movimento estudantil entretido com praxes.