O Orçamento foi aprovado, mas o que resta da confiança entre os parceiros que apoiam o governo? A avaliar pelo que se passou ontem, muito pouca. A votação final foi marcada por devastadoras críticas do Bloco de Esquerda ao governo, por ter mandado o PS recuar na proposta que cortava alguns subsídios às energias renováveis.
A votação favorável do PS na sexta-feira tinha sido negociado entre o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Pedro Nuno Santos e Jorge Seguro Sanches, secretário de Estado da Energia, com o ámen do ministro das Finanças, Mário Centeno, e do ministro da Economia Manuel Caldeira Cabral. Mas, poucas horas depois da proposta ser aprovada, ainda na noite de segunda-feira, António Costa mandou “parar as máquinas”, obrigando a nova votação e a uma reviravolta – ontem o PS chumbou aquilo que tinha previamente acordado. O Bloco ficou em estado de choque e demonstrou-o amplamente.
Mariana Mortágua foi de uma violência extrema contra o governo que apoia: “O erro de hoje [ontem] é inédito nos dois anos deste acordo e queremos registá-lo porque marca o fecho deste processo orçamental. O governo não honrou a palavra dada”.
Mortágua registou também que o gesto do governo pode vir a ter consequências: “A avocação, na vigésima quinta hora, já expirado até o prazo formal para pedidos de avocação, é um episódio que fica na história deste orçamento e desta maioria política”, disse.
“O PS preferiu amarrar-se aos mesmos setores que já protegeu nos seus governos anteriores”, prosseguiu a deputada do Bloco de Esquerda, acusando António Costa de ceder aos interesses das elétricas: “Quando era preciso um primeiro-ministro com ‘nervos de aço’ para responder às empresas que pretendem manter rendas de privilégio, o governo falhou”, prosseguiu Mariana Mortágua acusando o governo de “deslealdade” não só para com o Bloco de Esquerda mas também para com o parlamento. No twitter, Catarina Martins já tinha acusado o governo de “ceder aos mesmos lóbis de sempre”.
António Costa, que esteve presente apenas nos discursos finais na votação, ouviu o discurso de Mariana Mortágua sem nada dizer. No entanto, naquela mesma sala, a 8 de junho, o primeiro-ministro tinha defendido a necessidade de “reduzir os custos da energia para toda a gente”. Na altura, Costa acusou as elétricas de “várias manhas” para conseguir “contornar muitas vezes com a indevida cobertura das entidades reguladoras aquilo que é garantido”.
Mariana Mortágua lembrou ao primeiro-ministro que o processo negocial que redundou no voto favorável do PS na sexta-feira foi transparente: “Essa medida, parcial e moderada, foi trabalhada e adaptada nos seus detalhes em acordo com os ministérios da Economia e das Finanças. Ela foi, tal como acordado, aprovada na sexta-feira passada, com os votos do Bloco, do PCP e do PS”.
César diz que governo não é “refém”
Sobre este assunto, Carlos César, líder parlamentar do PS, afirmou o seguinte: “Este não é, apenas, um governo PS. Mas não é, tão pouco, um governo refém de qualquer partido, por mais persuasivo ou loquaz que um ou outro queira parecer”.
Coube a Pedro Nuno Santos, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, fazer o discurso de encerramento, “honra” que costuma caber só a ministros. O negociador principal da geringonça enalteceu os feitos da maioria parlamentar, afirmando que a solução provou que “afinal havia alternativa”. Mas o discurso entusiástico de Pedro Nuno Santos, grande entusiasta da solução de esquerda, não chegou para inverter o gelo que se instalou entre os parceiros.
Jorge Costa, deputado do Bloco de Esquerda, foi um dos primeiros intervenientes da reunião plenária e colocou o tema logo em cima da mesa, afirmando que neste OE se viu “o melhor e o pior que a política tem para dar às pessoas”, sendo “o melhor” o investimento na transparência dos processos e “o pior a avocação feita pelo PS com intenção de alterar o sentido de voto.
O PS preferiu ignorar a discussão. Luís Testa, deputado socialista, tomou a palavra e enumerou várias medidas. Porém a resposta à pergunta que todos queriam saber ficou por responder. E o Bloco voltou a insistir. Jorge Costa relembrou ao parlamento qual tinha sido a votação do PS na passada sexta-feira e deixou uma “pergunta concreta”: “Quer o PS alterar o seu sentido de voto? E se quer, porquê?”. O PS não queria, de todo, responder à delicadíssima questão.
Quem se colocou ao lado do Bloco e do PCP, no momento do votação, foi o deputado socialista Ascenso Simões, em nome da “palavra dada, palavra honrada”.