António Maia Gonçalves. “Nada nos prepara para lidar com o insucesso de perder um doente”

Médico intensivista acaba de publicar “Reanimar?”, livro que denuncia as reanimações cegas e indiscriminadas nos hospitais portugueses que só prolongam o sofrimento 

António Maia Gonçalves, especialista em Medicina Interna e Cuidados Intensivos, acaba de publicar um livro que denuncia reanimações cegas e indiscriminadas nos hospitais. “Reanimar?”, o título, é uma interrogação, porque é precisamente o debate sobre esta decisão médica – que não o tem sido, por medo de falar da morte e assumir responsabilidades – que o médico quer provocar entre pares e cidadãos. Numa especialidade que lida muito com a morte, começamos a conversa por aí e pelo confronto do médico com as suas limitações. 

Conta no seu livro que, quando se formou, o seu pai ofereceu-lhe um microgravador para registar as suas memórias de médico. Chegou a usá-lo?

As primeiras vezes. No primeiro dia cheguei a casa e mostrei-lhe que tinha tratado duas amigdalites, um enfarte e uma pneumonia. Ele era neto de médico. “Conta-me é as histórias que te marcam, amigdalites vais ter a vida toda”, disse. Ainda gravei mais umas duas ou três vezes, mas depois, quando fui trabalhar para o Porto, acabei por deixar o gravador em Cascais. Deve estar algures lá na garagem de casa. O que ficou foi esse pedido do meu pai para guardar as histórias e a minha memória tem conseguido gravá-las todas.

O que marca mais: o primeiro doente que se perde ou o que se salva?

Sou um otimista, diria o que se salva. Mas é muito difícil não se guardar quem se perde. Muitas vezes doentes que se perdem tiveram muito empenho e são memórias que um médico deve guardar para saber que é só um médico: nunca conseguirá resolver os problemas todos. E é muito nobre, mesmo nessas vezes em que não os podemos salvar, dar aos doentes todo o conforto possível, não nos deixarmos bloquear por não podermos curar. 

Este livro debruça-se muito sobre a posição da medicina perante a morte. Com a idade e experiência, a morte de um doente passa ser gerida de forma diferente?

Obriga-nos a olhar a morte com muito mais respeito e mais tato, não só com o doente mas com a família, no sentido de prepará-los. Às vezes com a família sou mais duro, mas com o doente tento preparar mas nunca tirar a esperança. Não mentindo mas omitindo, tentando dar uma resposta com alguma luz. Não se pode apagar as luzes às pessoas.

Mas às vezes isso pode ser confundido com uma postura paternalista.

Se um doente for muito direto, respondo. Neste momento tenho um doente relativamente jovem, com 60 anos. Tem um tumor na cabeça, foi operado, o tumor recidivou e decidimos reoperá-lo. Perguntava-nos com toda a clareza: se eu for operado duro quanto mais tempo? E se a operação correr mal? A operação correu bem, mas a recuperação não foi a prevista. Está à espera da morte. Pergunta-nos: tenho mais duas semanas? Mais três? Quando vou deixar de andar? E aí temos de responder com toda a clareza e determinação. Um médico tem de ser honesto mas, na medida do possível, tentar amenizar as más notícias. Não são mentiras piedosas, mas fazer com que a verdade seja confortável.

E nos hospitais, atualmente, há tempo para essas conversas?

Se tivéssemos um bocadinho mais tempo era melhor. Nos Cuidados Intensivos tem havido um crescendo de preocupação com isso. Há um espaço próprio para atender as famílias e isso tem melhorado a qualidade dos cuidados. No dia-a-dia do internista muitas vezes não há tempo, mas preocupo-me em encontrá-lo. É tão importante como resolver a falta de oxigénio ou baixar a febre.

Que imagens tem do momento da morte, que acabam por presenciar mais vezes?  

Nos Cuidados Intensivos o doente normalmente está em coma, ligado a um ventilador. O que vemos acaba por ser nos monitores. O que tentamos é, às vezes, segurar a morte para a família chegar e ver o doente vivo. Ter esse conforto.

Segurar como?

Com intervenções farmacológicas. Acho fundamental para a família poder fazer o luto. 

Há algum momento final que recorde?

Há momentos que ficam para sempre. Há 15 dias, um doente que eu até conhecia mal esteve connosco no pós-operatório com uma complicação. Conseguimos tirar-lhe o ventilador e, mesmo com dificuldades em respirar, o senhor tentava responder sempre com ânimo, com uma serenidade… Como é que alguém ali quase a afogar consegue ter aquela expressão de paz e dar um sorriso. A certa altura. pôs a mão em cima da minha, a minha com uma luva. “Estou melhor”, disse-me. Entretanto parou e não foi possível reanimá-lo. Aquela expressão só podia ser de alguém que tinha cumprido a vida e para quem partir tinha sido natural. Sei que daqui a dez anos ainda me lembro daquela expressão. Às vezes esqueço-me do nome das pessoas, mas não me esqueço nunca da história.

Costuma dar a notícia da morte?

Sim, acho que é uma notícia demasiado séria para não ser o médico a fazê-lo.

Mas é isso que os médicos fazem?

Há dois tipos. Os cirurgiões lidam pior com o insucesso do que os médicos não cirurgiões. O intensivista, estando mais familiarizado com a morte, não foge tanto. Até porque há uma coisa: nos cuidados intensivos, é raro sermos surpreendidos, vamos tendo os sinais de que as coisas estão a evoluir mal e de que o doente vai falecer. É uma morte antecipada. As mortes não esperadas em Cuidados Intensivos são raríssimas.

São mais inesperadas algumas recuperações?

Sim, surpreendo-me mais às vezes com um doente que eu pensava que não ia recuperar e acaba por recuperar. 

Mas alguma vez testemunhou um “milagre”, como se costuma dizer?

Já tivemos situações muito gratificantes. Lembro-me de um senhor pouco mais velho do que eu, com 50 e tal anos, que fez um pneumotórax bilateral. Não é muito grave se tivermos o outro pulmão a funcionar: dá para fazer um buraquinho, pôr um dreno e tirar o ar. Quando acontece bilateralmente, o doente não tem hipóteses. Nesse caso, fez um pneumotórax bilateral quase simultâneo e, ainda assim, conseguimos. 

Sendo crente, atribui um desfecho assim a uma intervenção divina ou à técnica?

Sou crente, mas entendo que o médico deve ter, antes de mais, capacidade técnica e científica. Se tiver fé, melhor. Mas isso vê-se nos gestos simples de todos os dias. Entubar um doente para o ventilar: passar um tubo pela orofaringe e entrar pela traqueia para o conectar a um ventilador. Dito assim, parece fácil. Mas há doentes que, por razões anatómicas, não conseguimos chegar lá. Já me morreu um doente porque não consegui entubá-lo. São momentos de grande stresse e, acredite, nesses momentos quem é crente apela a alguma força divina que nos ajude e a entubação não falhe.

São gestos de minutos.

Sim, janelas de oportunidades muito pequenas. É um pesadelo não conseguir entubar um doente. Não acredito que haja um médico intensivista no mundo que, por mais experiente que seja, no momento da entubação não sinta medo e não apele a alguma entidade superior por uma mãozinha. 

Quando as coisas correm mal, como gerem a frustração?

A frustração estende-se a toda a equipa. É como se tivessem errados todos.  Partilhamos muito para racionalizar e criar mecanismos de defesa. Verbalizar e pedir apoio é fundamental. É impossível uma ineficiência nossa resultar na morte de um doente e ficarmos como se nada fosse, basta ser humano.

Diz no livro que respeita a morte mas não tem receio. Perdeu o medo na medicina ou nunca teve?

Foi na profissão. Habituamo-nos que a morte faz parte da vida e há situações em que é a evolução natural. Há dias em que morre uma, duas ou três pessoas e é pesado e há dias em que não morre ninguém. Convém dizer que, na maioria das vezes, os doentes que entram nos Cuidados Intensivos saem vivos, se não também teria de escolher outra especialidade. A mortalidade até é maior nas enfermarias, também porque há muitos que recuperamos e que não têm viabilidade para se autonomizar do hospital. Isso de certa forma mascara a mortalidade dos intensivos, que ronda os 15% a 20% dos internados.

Escreve que na sociedade atual há uma tentativa de escamotear a morte. Como chegámos a este ponto?

Há um bocadinho a cultura do sucesso e do imediatismo, a cultura do Instagram. E a vida não é assim. Temos de conseguir a serenidade possível para que os momentos possam acontecer em paz e vivê-los, não escondê-los porque são um insucesso. Antigamente as pessoas morriam em casa acompanhadas, hoje em dia morrer em casa é quase insalubre. Os cemitérios abandonaram os centros da cidade, quanto mais longe melhor. Passa-se lá no Dia de Todos-os-Santos, se se passar.  

O que sente nos familiares com quem lida?

As pessoas tendem a esconder o sofrimento, muitas vezes pedem rapidamente apoio farmacológico para anestesiar emoções e isso não é a natureza humana: há emoções que têm de ser vividas. O nosso equilíbrio emocional depende de todas estas vivências. Quando não tinha filhos e passei pela pediatria a fazer o estágio, via aqueles pais às duas da manhã só porque o miúdo tinha dois espirros e um pouco de tosse e achava ridículo. Depois do primeiro filho, passei a compreender as pessoas. Em relação à morte é igual: quando passamos por uma perda, percebemos mas temos de aprender a gerir. Não tenho nenhuma filia pela morte, mas escondê-la nunca.

Este livro é sobretudo sobre Cuidados Intensivos mas toca alguns temas em debate atualmente como a eutanásia. Diz que, na base destes movimentos, há uma destabilização da relação entre médico e doente.  Sente-o na prática?

Sobretudo em doentes que não conheço bem, mas o que acontece é as pessoas perguntarem: mas vai desligar o ventilador? Veem nos filmes e ficam com esse receio. Lembro-me de uma senhora que tinha muitos filhos e a quem introduzi morfina subcutânea durante a noite para ter menos dores. Foram fazer queixa ao diretor clínico de que tinha havido uma tentativa de homicídio da mãe. De facto, há situações em que as pessoas têm essa desconfiança do médico, o que tenho de achar aceitável porque as pessoas veem os filmes, leem coisas e ficam genuinamente preocupadas. E aí o médico é muito culpado, porque tem obrigação de explicar o que faz.

E durante muito tempo se calhar muitos não se preocupavam com isso, eram assim uns seres superiores…

Eram, tiveram de descer de um pedestal e a bioética deu um grande contributo para que as coisas melhorassem. Mas melhoraram em tudo. O dono da fábrica também queria lá saber se os operários morriam à fome. Vamos respondendo um pouco àquilo que as pessoas nos solicitam. A autonomia do doente é uma evidência nos dias de hoje.

Foi até consagrada pela primeira vez no mês passado na Declaração de Genebra, o juramento moderno dos médicos. Algumas pessoas acreditam que é um passo para a abertura dos médicos à despenalização da morte assistida. 

Discordo. A ideia de uma eutanásia praticada por médicos só vai gerar nas pessoas medos e inseguranças. Sabemos que a eutanásia é feita com medicamentos, não precisa de cuidados hospitalares. Acho que os médicos devem estar completamente fora disso: as pessoas têm de saber que, quando vão ao médico, é para serem tratadas, curadas, salvas, não pode haver dúvidas. Uma coisa é dizer-me que um doente achou que pôr fim à sua vida era um direito de cidadania que tinha e pode ter fármacos que pode ingerir em casa e morrer em paz. O que é que o médico tem de ver com isso? Se não há aqueles medos: vai-me desligar o ventilador? Pôs morfina para a minha mãe morrer?

Nunca nenhum doente lhe pediu ajuda para morrer?

Não. Já tive doentes que me disseram que não queriam ir para os Cuidados Intensivos, para os deixar na enfermaria. Cumpri religiosamente.

Mas não acontece?

É um pedido raríssimo e que o médico consegue dissuadir garantindo todo o conforto. É preciso é clarificar as conceitos e ver o que acontece nos países que liberalizaram a eutanásia: 3% dos doentes que morrem na Holanda é por eutanásia, é quase uma mortalidade tão grande como o cancro da mama. Qualquer dia é a principal causa de morte e não é seguramente para isso que os médicos existem. Mas também acho que é preciso clarificar conceitos: uma coisa é um médico dar uma droga a um doente para o matar, que é a eutanásia. No outro extremo está a obstinação terapêutica, que é um médico tratar o doente com meios excessivos sabendo que a situação não se vai reverter. Isso é mascarar a morte. A linha entre uma coisa e outra é clarinha e o médico tem de estar muito focado: quando há irreversibilidade clínica, tem de instituir medidas de conforto, que vão aliviar o processo de morte. Mas não é matar, são terapêuticas de conforto.

Eutanásia passiva?

Não gosto desses termos, só confundem as pessoas. A terapêutica de conforto implica analgesia e sedação e disso vai resultar algum adormecimento do doente. Com isso concordo, é boa prática médica.

Há muita obstinação terapêutica? 

Há. O problema é que estamos a ter uma medicina mais defensiva. O médico não está para correr riscos. Nos Cuidados Intensivos, vemos claramente isso: se o doente parou, mesmo sendo uma situação terminal, entuba-se, liga-se a um ventilador e a família que decida. São gestos de Pilatos que configuram muito a obstinação terapêutica.

É uma atitude que tem aumentado?

Sem dúvida, com a mesma força com que aumentaram os processos contra os médicos. Quem está disposto a passar um tempo em cárcere para tratar melhor um doente?

Também não o contraria?

Contrario, com muita segurança.

E já teve processos?

Já, mas não é daí que vem algum problema, pois faço tudo com a consciência de que faço bem. Nunca vou deixar de reanimar alguém se tiver dúvidas. Um dos principais flagelos da medicina hoje em dia é reanimar os doentes todos.

É a denúncia mais forte no seu livro, quando identifica os três erros que considera mais comuns na prática médica: a prescrição antibiótica excessiva, o sobrediagnóstico e as reanimações cegas e indiscriminadas. Da prescrição antibiótica excessiva ouvimos falar, do resto nem tanto.

O sobrediagnóstico acontece diariamente. Qualquer pessoa que tenha um caroço na tiróide é logo operada, o mesmo na mama ou na próstata. Há um excesso de diagnóstico que é complicado de gerir sobretudo numa altura em que começa a haver um negócio muito grande ao pé da medicina.

Mas há deliberadamente clínicas e hospitais a aproveitarem-se disso?

Não digo que seja premeditado, é algo que tem vindo a acontecer naturalmente. Mas, quer dizer, hoje em dia temos diretores de produção nos hospitais…

Que função é essa?

É aquela pessoa que diz aquele “serviço de cirurgia fez 50 apendicites, aquele só fez 40. O que é que se passa, porque é que produziram menos”? 

No público ou no privado?

No público e no privado. É uma coisa que me faz uma confusão enorme, desde logo pelo nome. A medicina não é uma fábrica. Para mim, o que importa é a sobrevivência, as complicações. Que haja uns gestores que se preocupem com estas coisas, não me importo, não lhes ligo é nenhuma.

Mas é fácil ter essa postura?

Vai sendo ainda possível para a minha geração. Para as gerações vindouras, em que já há um superávite de médicos, não vai ser tão simples.

Mas voltando às reanimações cegas.

Convivo com isto todos os dias e é muito desconfortável. Um doente pára numa enfermaria e é ativada a equipa de emergência. Começamos a reanimação e vemos que é um doente com um tumor no pulmão, metástases por todo o lado, completamente dependente. Vamos reanimar este doente? Claro que não.

Mas sendo uma decisão de instantes, como é que consegue ter a certeza?

Sei que um senhor com 70 anos, em estado de caquexia, emagrecimento severo, metástases cerebrais, metástases ósseas, vai morrer.

Pode querer dizer alguma coisa aos filhos.

A medicina é só um conjunto de conhecimentos técnicos, não tem capacidade de prolongar a vida para além do razoável. Esse senhor, se fosse reanimado, não ia dizer mais nada aos filhos. Ficava com um tubo até morrer.

O médico consegue ter essa certeza naquele curto espaço de tempo?

A medicina não é uma ciência exata, mas temos de procurar decidir bem e, para isso, há uma série de estudos que mostram num doente que tem uma falência multiorgânica, uma doença oncológica, 70 anos, a sobrevivência é de menos de 2% aos cinco dias.

Mas devia haver mais protocolos?

Acho sobretudo que, na doença crónica e na doença oncológica, o médico que segue habitualmente o doente devia escrever no processo as iniciais DNR, “Do not resuscitate”, não reanimar o doente. Hoje em dia nunca aparece.

Teria de ser decidido com o doente.

Muitas vezes o doente está num estado tão debilitado que não consegue, mas falando com a família. E pode estar no testamento vital. Não se pode é esperar que um doente numa fase agónica tenha esse discernimento: nessa fase temos de lhe dar conforto e deixá-lo em paz. Mas o que acontece é que às três da manhã tem uma paragem, o enfermeiro ativa a emergência e o médico vai lá reanimá-lo.

Alguma vez disse: “não reanimo”.

Já.

E a família?

Geralmente as situações são tão claras que a família já estava à espera do óbito. É muito mais fácil para um médico mandar reanimar todos os doentes, mas isso é má prática médica, é prolongar sofrimento. Fazer reanimações milagrosas para o doente ficar numa cama…

E em situações cinzentas?

Na dúvida, reanima-se.   

Mas dá para quantificar até que ponto há reanimações a mais?

Não, nem vejo que seja necessário. Seguramente que há: sei exatamente quais são os hospitais que reanimam todos os doentes e os que não reanimam todos os doentes. O que importante não é identificar os hospitais, eu quero é consciencializar para o problema e contribuir para um debate que não deve acontecer apenas na academia, é uma questão de cidadania. Numa altura em que, com o aumento da longevidade, as pessoas chegam aos hospitais com mais patologias, é algo que importa discutir.

Até que ponto pesa o ser católico nesta sua posição? Para alguém que acredite numa vida depois, pode ser mais fácil aceitar a morte.

Se tiver que morrer, morro, penso que vou ter serenidade, mas gosto muito da vida, acho que é um milagre estar vivo e não quero morrer nem que os meus doentes morram. Isto não tem nada a ver com uma convicção religiosa: colocar a sigla de não reanimar o doente decorre de critérios científicos.

Os intensivistas discutem isto ou é um tema tabu?

O objetivo é mais falar com os não intensivistas, para eles terem esta sensibilidade. Fizemos um inquérito com 500 médicos e 500 doentes que padeciam de doenças crónicas, para perceber se alguma vez tinha havido uma discussão com o médico sobre o desejo de admissão numa Unidade de Cuidados Intensivos em fase aguda da doença. Menos de 5% responderam afirmativamente.    

Porque é que os médicos não falam disso?

Por muitas questões mas principal penso que será o pudor, o medo de falar da morte. Mas isto não é um fenómeno nacional, é assim noutros países da Europa. Temos de procurar que as situações de irreversibilidade clínica estejam documentadas para que não seja o intensivista a aparecer ali como um iluminado e que tem 30 segundos para decidir se aquele senhor tem condições para ser reanimado ou não. 

Acha que esta discussão devia ter precedido a da eutanásia, já que tem a ver com procedimentos que já estão instituídos?

Parece-me que era natural discutirmos estes procedimentos antes de começarmos a discutir os outros.  Acho que só depois de termos estas questões claras e consensuais, havendo necessidade de fazer mais alguma coisa, então que se faça.

Não teme que a decisão de não reanimação seja vista apenas como uma medida economicista?

Nos Cuidados Intensivos gastamos muito dinheiro: custo médio do internamento é superior a 2000 euros/dia. Somos grandes gastadores. Uma coisa posso dizer: nunca nenhuma administração me condicionou sobre custos. Lidamos com situações de vida ou de morte e não há nenhum administrador que queira ser responsável pelo que quer que seja. Nós, médicos, somos responsáveis todos os dias pelas decisões que tomamos. Respeito os administradores, mas muito mais os doentes. Claro que não vou inventar um transplante de fígado para um doente de 90 anos, porque não era razoável e não teria saúde para isso, mas um transplante de córnea se calhar não é descabido. Para mim a idade, por si só, nunca será um fator limitativo: cada decisão tem de ser em cada doente e o médico não pode perder a competência de decidir. E os médicos não podem responsabilizar o poder político e os gestores por decisões que tenham um caráter economicista se forem cúmplices com isso,o médico tem alguma margem de manobra na sua pratica clínica. Se calhar não é agradável ser repreendido pela administração, mas não era isso que me preocupava. Preocupava-me era se tivesse deixado um doente morrer por causa dos custos. 

Viaja atrás de um concerto de ópera, toca piano, gosta de cozinhar e no livro fala de muitas leituras. Abel Salazar deixou a frase célebre: um médico que só saiba de medicina, nem de medicina sabe. É esse o espírito?

Há especialidades em que a carga horária não é tão grande. No nosso caso, temos um ritmo intenso e lidamos com a morte, temos de ter escapes. É mais isso. Vamos procurar na antropologia, na literatura, na música escapes para continuar a ver beleza na vida e arranjar coragem.

Quando tem um dia mau, o que ouve?

Aí não posso ouvir ópera, mexe muito com as minhas emoções. Tenho de trocar o CD do carro e, de Braga até ao Porto, vou a ouvir uma coisa mais animada. Bob Seger, Rod Stewart, Dire Straits, Frank Zappa, coisas da minha geração.

Para que é que não o prepararam na medicina?

Acho que ninguém esta preparado para o insucesso, ver um doente morrer. Mas às duas ou três da manhã numa urgência vai encontrar sempre um médico mais velho a passar um conhecimento a um colega mais novo. Há coisas que não podemos aprender na faculdade, que acabamos por só vivenciar no dia a dia. Costuma dizer-se que quando há dois médicos a trabalhar, há um a aprender e outro a ensinar.