A bienal de arte contemporânea de Coimbra tem um propósito firme: o de desenvolver uma ação cultural transformadora, ao mesmo tempo mobilizando públicos – a começar pelo da própria cidade – e questionando o que está em causa quando se fala de património, e, pelo caminho, rever a própria identidade de Coimbra. Carlos Antunes, diretor do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), está pela segunda vez à frente da iniciativa que convoca toda a cidade, se espalha por ela, ocupa alguns dos seus edifícios mais emblemáticos e até recupera outros. Um evento que, na sua segunda edição, se impôs numa cidade que tem visto o seu antigo prestígio desvanecer-se, e que tem a pretensão de se tornar incontornável não apenas no âmbito nacional, mas internacional.
Sendo este o segundo ano da Bienal, o que é que já se permitem ter como ambição e o que vos parece que já foi conseguido?
Não há nada pior para um projeto cultural do que mostrar-se irrelevante nos seus propósitos, nas suas intenções. Quase diria que mais vale não existir. Estamos todos um pouco cansados de projetos irrelevantes, que nascem condenados a morrer. São exercícios de vaidades que não conduzem a nada. Prefiro pensar que este projeto é ambicioso, não por alguma espécie de vaidade pessoal, mas porque é a única forma de ser relevante para a discussão de qualquer coisa. E, neste caso, a discussão passa por saber como é que podemos olhar o mundo, a partir da sua história e a partir da sua herança, numa cidade que tem um modelo matricial ao qual não pode fugir, sendo que a inscrição de Coimbra como património da humanidade veio relevar mais ainda essa circunstância. E ser património da humanidade não é necessariamente uma coisa boa. Aquilo que nós fazemos disso é que pode ser bom ou mau.
Quais são as vossas preocupações?
Ser património da humanidade é um desafio para uma cidade, e um desafio especial para a arte contemporânea. Como é que a arte contemporânea pode conviver com um desígnio que é ele mesmo, tendencialmente, conservador? Patrimonizar o mundo é congelá-lo. Ou pode ser. Muitos lugares que se tornaram património da humanidade assumem que sofreram o efeito UNESCO, isto é, ficaram encerrados como um parque temático. Isso é tudo aquilo que nós, enquanto atores da arte contemporânea, não podemos permitir.
Que forma encontraram de virar o bico ao prego?
Entendemos esta inscrição como uma possibilidade de fazermos uma revisão crítica da nossa identidade como cidade. E na nossa relação com o mundo. Se fosse para ficarmos só por aqui não tinha muito interesse. É por isso que a Bienal se chama ‘anozero’: como podemos propor uma espiral em ato contínuo que volte sempre ao início para se expandir, fazendo uma reflexão sobre isto. E como é que isto pode ser um tema motivador para criadores e artistas, para arquitetos, para designers, para pessoas que fazem da criação plástica a sua relação com o mundo.
Voltando então ao início, o que lhe parece que já foi conseguido?
Com esta segunda edição acho que já conquistámos um lugar. E não sou eu que o digo. Dizem os críticos, dizem os jornalistas, e sentimo-lo reiteradamente na forma como os media nos abordam, como certos organismos nos convocam para estarmos presentes noutros eventos. É também algo que sentimos pela presença do público, e a começar pelo público de Coimbra. Com a Bienal, o nosso público [Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, CAPC] aumentou exponencialmente. E acho que a Bienal pode contribuir para um problema que esta cidade sempre teve, que é um problema de autoestima. Coimbra sempre foi, de alguma forma, um lugar de passagem.
Qual é a ideia que se faz hoje desta cidade?
É curioso porque há visões tão diferentes. Por exemplo, aquele senhor que está ali sentado chama-se Víctor López Cotelo, é talvez o mais extraordinário arquiteto espanhol, provavelmente um futuro Pritzker, e acabou de conhecer Coimbra de uma forma mais completa. Já cá esteve com os alunos há uns anos… É um senhor com bastante idade, tem quase 80 anos, e acabou de me dizer que achou a cidade absolutamente fascinante na sua morfologia arquitetónica. E é curioso porque, muitas vezes, não temos esta relação com a cidade, nem os de cá nem os de fora. E é preciso alguém capaz de olhar para a cidade sem nenhuma espécie de complexos… Porque há também esse complexo que tem que ver com a aura da cidade ligada à Academia, alguma vaidade e peso associado a isso que nos faz retrair em relação a ela. É engraçado que, quando chega alguém que não está por dentro dessa noção, alguém que tem uma visão desassombrada, dá-nos uma perspetiva nova, límpida, e assim surgem-nos comentários como este do Cotelo, que mo disse há dez minutos.
Essa perspetiva estrangeira tem influenciado o vosso trabalho?
É algo que nos faz pensar que esta cidade de facto tem sido muito fechada para aquilo que são as práticas artísticas contemporâneas… Mas a sua circunstância espacial e arquitetónica são uma matéria riquíssima para a investigação plástica. E acho que esta Bienal demonstra isso. A forma como os artistas interagem com os lugares patrimoniais, criando peças que resultam em certos casos apenas e exclusivamente da sua relação tensa com aquele lugar.
Muitas das críticas que se fazem a Coimbra referem uma certa degradação do ambiente cultural, que foi um aspeto muito forte da sua afirmação. Vivendo e dando aulas nesta cidade, partilha essa ideia?
Não, não tenho de todo essa ideia. Temos um problema grave que é continuarmos a ser um país que se deixa dividir em dois pólos do ponto de vista cultural – Lisboa e Porto -, e isto tem consequências brutais desde logo no que toca à distribuição dos apoios. Não imagina o quão difícil é conseguir apoios para um projeto cultural em Coimbra. Eu dirijo o CAPC, que é a instituição portuguesa mais antiga ligada à divulgação de arte contemporânea. Faz 60 anos para o ano que vem. E é-nos incrivelmente difícil conseguir trazer um jornalista a Coimbra, trazer público… Muitas pessoas reconhecem o mérito do nosso trabalho, o nosso edifício sede foi classificado pelo Estado português há um ano como monumento de interesse público, e não foi pelo edifício mas pela sua história. Segundo sei, é a primeira vez que o Estado inscreve a prática da arte contemporânea como um património para legar. Sobre isto falou-se muito pouco e acho que é um tema que daria para uma grande reflexão.
Se já há um reconhecimento público, agora qual é o passo seguinte?
Apesar de este trabalho – e não estou a falar do meu, estou a falar do trabalho dos que me antecederam ao longo de 60 anos: o Alberto Carneiro, o Ernesto de Sousa, gente absolutamente notável – ser por toda a gente reconhecido, é tremendamente difícil trazer público a Coimbra. As maiores distâncias são as distâncias mentais, não são as físicas. Até porque neste país tudo é perto. O Porto está a uma hora daqui, Lisboa a hora e meia de carro. Para atravessar São Paulo é capaz de demorar mais do que uma hora e meia, portanto a questão não é física, é mental. O vir a Coimbra é, para algumas pessoas, como ir a um lugar remoto. Mas não é Coimbra, eu diria que é tudo aquilo que não seja Lisboa e Porto.
E esta cidade tem peso no que toca à criação artística?
Acho que há uma produção artística e cultural muito relevante em Coimbra. Há estruturas realmente notáveis em Coimbra. Dou-lhe exemplos muito concretos: o Centro de Artes Visuais, a Escola da Noite, no teatro, o Jazz ao Centro, na música – que tem feito um trabalho extraordinário, ali tenho visto coisas de pessoas que estão a tocar hoje em Coimbra tendo há dois dias tocado em Nova Iorque… É essa dimensão cosmopolita que estas estruturas têm assumido, isto sem falar no CAPC, porque seria suspeito eu falar sobre isso. Este edifício aqui ao lado, o Convento de São Francisco, onde estamos a fazer este ciclo de conferências, tem um potencial enorme. Quando esta grande estrutura se concertar e der escala ao trabalho dos produtores desta cidade, não tenho nenhuma dúvida de que Coimbra irá ocupar o lugar que merece. Dir-me-á que são poucas coisas, concordo. Mas também é preciso perceber a escala. Estamos a falar de uma cidade que tem pouco mais de 100 mil habitantes, não tem os três milhões de Lisboa nem o milhão e tal do Porto. Sob o ponto de vista da proporção, o que aqui se faz é bastante significativo.
No que diz respeito à própria arte contemporânea parece viver-se hoje um momento de grande incerteza, uma visão menos audaz. Como lhe parece que tem sido enfrentada esta crise de identidade?
A arte contemporânea é uma disciplina que vive das suas próprias crises, que se alimenta disso, e não pode ser de outra maneira. Não há nada pior do que artistas felizes – isto pode parecer uma boutade mas é verdade. A arte contemporânea é o lugar da inquietação, por definição. Não há nenhum artista que lhe diga que está contente com o seu trabalho, satisfeito com a sua produção… Quando esta fase começa a aparecer nos artistas é sinal de que alguma coisa está a correr mal. Portanto esse lugar de marginalidade, de inquietação permanente, e da colocação das perguntas, tudo isso pertence à sua identidade. Nós hoje estamos todos numa ressaca qualquer do modernismo, da pós-modernidade, e continuamos todos à procura do nosso caminho, mas isto é verdade hoje como se calhar já o era há 100 anos, como talvez tenha sido desde sempre. Os movimentos sempre surgiram como resposta a uma inquietação qualquer.
E não lhe parece que há algo próprio deste tempo?
Hoje vivemos uma coisa um pouco diferente, com o fim dos movimentos. Mesmo o modernismo foi um movimento, balizado a partir de certos axiomas. A pós-modernidade também, apesar de tudo. Hoje vivemos um momento em que nos mostramos resistentes a estas dinâmicas coletivas. Vai cada um para seu lado, questionando o seu próprio trabalho, o trabalho do outro… Se essa é a crise, não é a crise da arte contemporânea, é a crise do mundo. Hoje vivemos este terrível problema de sermos muito autocentrados e termos muito pouca atenção para o outro.