Jerusalém. Os dias de fúria já começaram

Chamamento para a ‘Terceira Intifada’ transformou Jerusalém, Gaza e Cisjordânia em palcos de confrontos violentos entre israelitas e palestinianos, num dia em que muçulmanos de todo o mundo saíram à rua para protestar  contra o reconhecimento americano da Cidade Santa como capital de Israel.

Sexta-feira é dia habitual de oração, reflexão e descanso para a esmagadora maioria dos muçulmanos, mas esta última não o foi. Assim o indicavam todas as previsões e mais algumas, emitidas antes, durante e depois do anúncio de Donald Trump, na passada quarta-feira, de oficialização da intenção norte-americana de deslocar a embaixada dos Estados Unidos em território israelita, de Telavive para a Cidade Santa, e de reconhecer, com tal gesto, o estatuto de capital do Estado de Israel a Jerusalém. E assim se cumpriram.

O dia sagrado para o Islão rapidamente se transformou num dia de protesto junto das comunidades muçulmanas espalhadas pelo globo – como as do Afeganistão, Paquistão, Jordânia, Irão, Turquia, Tunísia, Mauritânia ou Indonésia, que saíram à rua nas suas cidades –, e num dia de violência para os milhares de palestinianos que se manifestaram e envolveram em confrontos com as forças de segurança israelitas na Cidade Velha de Jerusalém, nas localidades acotoveladas ao longo da Faixa de Gaza e perto das cidades de Ramallah, Hebron, Belém, Nablus, Jenin, Jericó ou Tulkarm, na Cisjordânia.

Ao final do dia, contava-se pelo menos um morto e mais de 90 feridos, números confirmados pelo ministério da Saúde da Palestina e pelo jornal israelita Haaretz, mas que poderão vir a aumentar ao longo das próximas horas. O falecido é Mahmoud Al-Masri, um palestiniano de 30 anos, residente na região de Khan Yunis, em Gaza, que foi atingido por tiros disparados por soldados israelitas e não resistiu aos ferimentos. 

De acordo com aquele diário, o sistema antimíssil israelita montado ao longo da Faixa de Gaza intercetou mesmo dois rockets oriundos daquela pequena língua de território, encaixada entre o Egito, Israel e Mar Mediterrâneo, que fizeram disparar as sirenes nas cidades judias de Ashkelon e Sderot. Não foram, no entanto, reportadas quaisquer mortes ou ferimentos.

Prelúdio de guerra

Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana, tinha pedido «três dias de fúria» contra a decisão tomada por Trump, mas sublinhara repetidas vezes a importância de se levar a cabo um protesto pacífico. Por outro lado, Ismail Haniya, líder do Hamas – o partido radical islamita que governa o enclave de Gaza e que recentemente fez as pazes com a Fatah, de Abbas – rotulou a movimentação de Washington como uma «declaração de guerra» aos palestinianos, e por isso implorou por uma ‘Terceira Intifada’ «contra o inimigo sionista».

Demanda que não demorou muito a ser posta em ação e que, a contar com as imagens e os relatos que chegaram durante o dia de ontem, tem potencial para transformar uma região instável num autêntico teatro de guerra. Em árabe, a palavra ‘intifada’ associa-se a ‘revolta’ ou ‘agitação’ e foi em grande medida imortalizada com os movimentos de sublevação palestiniana contra a ocupação israelita, entre 1987 e 1993, e entre 2000 e 2005, respetivamente denominados por ‘Primeira Intifada’ e ‘Segunda Intifada’.

Planos de paz em risco

Jerusalém é cidade sagrada para muçulmanos, cristãos e judeus e é por esse motivo que o seu estatuto foi sendo sempre adiado, ano após ano, para um momento final das negociações de paz entre israelitas e palestinianos. Israel entende a Cidade Santa como capital indivisível do seu país – ocupou-a mesmo –, da mesma forma que a Palestina vê a área oriental da mesma como capital do seu futuro Estado. Precisamente por depender da resolução deste ponto (União Europeia e Nações Unidas propõem uma solução de capital partilhada entre Israel e um novo Estado Palestiniano) o conflito israelo-palestiniano alcançou nos últimos anos um estado de congelamento. E enquanto o nó não desata, a política de construção de colonatos judeus na Cisjordânia não perdeu o seu ímpeto e o número de refugiados palestinianos e seus descendentes já ultrapassou os cinco milhões.

Depois de prometida repetidas vezes em campanha, a questão da embaixada foi recuperada nos EUA numa altura em se finalizava o prazo para a suspensão da entrada em vigor de uma lei de 1995, aprovada pelo Congresso norte-americano, que define os passos para a transferência da representação diplomática de Telavive para Jerusalém. Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama e o próprio Donald Trump adiaram sucessivamente a aplicação da referida legislação, até ao atual Presidente ter decidido avançar para a mudança de instalações – que só acontecerá dentro de pelo menos dois anos, segundo o secretário de Estado, Rex Tillerson.

Além de contrariar décadas de política externa norte-americana e de, à primeira vista, não oferecer quaisquer proveitos aos aliados árabes dos EUA no Médio Oriente, o anúncio de Donald Trump originou uma condenação unânime da comunidade internacional – com a ONU, UE, França, Reino Unido, Arábia Saudita, Turquia, Rússia, Egito ou Jordânia à cabeça – e foi catalogado por vários líderes mundiais como um verdadeiro prego no caixão na ‘solução dois Estados’ e negociações de paz. Os Estados muçulmanos acreditam mesmo que a medida afasta automaticamente os EUA de serem mediadores no processo de paz, papel que Trump tanto apregoou aquando da sua visita a Israel, em maio deste ano.

Perigoso «senso comum» 

Da reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, resultou um repúdio generalizado de todos os membros que não os norte-americanos a uma decisão unilateral, que «viola a legitimidade e o consenso internacional» sobre a cidade de Jerusalém, que «complica a paz» e que dá redobrada força ao surgimento de movimentos violentos e radicais.

Nikki Haley, representante dos EUA naquele organismo, etiquetou a transferência da embaixada para Jerusalém como uma questão de «senso comum», mas aceitou as «dificuldades» que pode representar para a resolução do conflito israelo-palestiniano. Ainda assim, garantiu que «o Presidente [Trump] mantém o seu compromisso com o processo de paz» e até formulou um pedido. «Apelo a todos os países do Conselho de Segurança e do Médio Oriente para moderarem as suas posições e as suas ações nos dias que se seguirão», lançou, citada pela Al-Jazeera. Palavras que dificilmente terão eco em Jerusalém Oriental, Gaza ou Cisjordânia. Ali esperam-se dias de fúria.