Por pena de Emma

No aniversário da publicação de Madame Bovary, revisamos o livro que nos ensina como odiar as suas personagens

Quando a Corte Correcional do Tribunal do Sena indagou Gustave Flaubert sobre a verdadeira identidade da sua célebre personagem, este respondeu: “Emma Bovary sou eu”. Fugindo ao sentido de oportunidade e à manifesta auto-estilização do autor, a frase é em muitos sentidos verdadeira. Flaubert vestira a pele de uma mulher levada a cometer adultério, encarcerada na sua própria vida e condenada pela época em que se encontrava. Sem nunca indicar o quê e como devemos pensar sobre as suas personagens, Flaubert narra o desenrolar de eventos da vida de Emma Bovary, presa num casamento fracassado, sufocada pela maternidade, enfastiada pelo provincianismo que a rodeia. De seguida, sucedem-se os casos, as dívidas, as mentiras, num crescendo que sucumbe na inevitável morte.

No dia 15 de dezembro cumprem-se os 161 anos da primeira edição de Madame Bovary. A inspiração por trás da icónica Emma surgira num retalho de jornal que fora parar às mãos do então desconhecido Gustave Flaubert, em 1848. Na notícia relatava-se o caso de Delphine Delamare, uma dona de casa entediada (casada com o médico da aldeia), que após cometer diversos atos de infidelidade e de contrair dívidas avultadas na compra de roupa e itens para o lar, decidira cometer suicídio ingerindo uma dose letal de cianeto. Delphine Delamare deixava para trás uma criança no berço e um marido abandonado. Não é difícil encontrar semelhanças entre a verídica Madame Delamare e a fictícia Madame Bovary, o mais interessante é ver como Flaubert viu neste escândalo pueril uma oportunidade para explorar a área cinzenta que a sociedade puritana considerava indubitavelmente ser uma ofensa à moral. Quanto às motivações do autor, terão estado mais associadas ao valor da circunstância enquanto enredo do que à oportunidade para tecer um comentário sagaz à sociedade. Vladimir Nabokov, nas suas aulas de literatura da Universidade de Cornell (editadas em Portugal pela Relógio d’Água em 2004) terá dito que Madame Bovary “trata do delicado cálculo do destino humano, não da aritmética dos condicionamentos sociais”, referindo todo o universo das personagens do romance como um fim em si próprio e não como uma mera reacção aos pomposos costumes da burguesia francesa do século XIX.

Mas abrir as portas do realismo tem os seus custos. Após a sua publicação, Madame Bovary foi levado a tribunal sob a acusação de atentado ao pudor. O resultado final da obra, apesar de tudo, posiciona o autor como um dos fundadores da narrativa realista, e a sua influência hoje em dia é tão familiar que passa despercebida. Até aquele instante na história existia uma longa tradição literária que assumia as heroínas e os heróis como possuidores de uma beleza e virtuosidade absoluta, mas Madame Bovary carece das delimitações rígidas impostas pela moral e os costumes. O leitor julga que Emma é bela e assume naturalmente a sua virtude, mas ela recusa-se a ser virtuosa. Para ela, ser boa é pactuar com o seu destino pacato e entediante.

Um detalhe que nos é dado a conhecer sobre Emma Bovary é que ela é uma má leitora. Durante a sua infância e juventude lê histórias sentimentais e românticas que a levam a julgar que todos os amores reais deverão possuir essa mesma fogosidade. Flaubert menciona isto subtilmente, enumerando os lugares-comuns românticos do agrado dela, e assim é criada a expectativa face aquilo que deverá ser o amor. O leitor sofre o mesmo choque que a personagem quando se depara com a realidade do casamento, a rotina, a monotonia da aldeia, a falta de diálogo no seu lar. “Emma ouvia, com uma espécie de aturdida atenção, soarem uma a uma as badaladas falsas do sino. Um gato nos telhados, caminhando lentamente, arqueava o dorso aos raios pálidos do sol. O vento, na estrada, soprava rajadas de poeira. Ao longe, às vezes, uivava um cão; e o sino, a intervalos iguais, continuava o badalar monótono que se perdia nos campos.” É fácil imaginar Emma desamparada frente a esse badalar monótono.

O realismo embebido em estilo de Flaubert descreve até a exaustão detalhes minuciosamente escolhidos, e é através desses detalhes que retiramos impressões das suas personagens. Mas o autor deixa em aberto como nos devemos sentir em relação a Emma. Os comportamentos dela ao longo do livro oscilam entre a virtude e a mesquinhez, e pela altura em que os casos se iniciam é natural que o leitor comece a abominá-la. As mentiras, o egoísmo melodramático, a falsa sofisticação, a raiva que sente por Charles, o seu pacato mas bem-intencionado marido e, talvez o traço mais aversivo para o leitor, a completa falta de instinto materno para com a sua filha Berthe. Flaubert leva-nos a execrar Emma, mas de algum modo ainda sentimos afeição pela personagem. A sua vulgaridade provincial e o filistinismo estão velados pelas diversas enumerações à sua graça e beleza, os seus atos de perspicácia e astúcia sinuosa. Na altura em que ela desiste e dá um passo fulcral em direção à absolvição, na altura que Emma Bovary decide envenenar-se, torna-se impossível não sentir compaixão pela personagem. Fugimos aos moralismos codificados e na tragédia o fracasso alheio empurra-nos a sentir autêntica empatia pela personagem.

O monástico trabalho do estilo levado a cabo por Flaubert encoraja-nos a julgá-la sem remorso, mas ficamos de seguida desamparados frente a alguém que sacrificou tudo por se recusar a viver a vida que lhe fora destinada. A última descrição de Emma é a derradeira prova de complacência para o leitor. Ela jaz prostrada, o seu olhar “a desaparecer numa palidez viscosa semelhante a um pano muito fino”, esmagada por “uma massa infinita, um peso enorme” que gravita sobre o seu corpo. É perante esta última imagem que retiramos a grande lição de Madame Bovary, aquela que questiona as limitações do conhecimento sobre nós próprios e acima de tudo sobre aqueles que nos rodeiam. Aquela que nos diz quão complicado é ser generoso para com a nossa desastrada natureza humana, numa sociedade tão aferrada aos costumes. O drama de Emma Bovary reside no abismo entre a ilusão e a realidade, na distância entre o desejo e a obediência. Em última análise, é inevitável não nos vermos refletidos nessa fatal encruzilhada.