Estão a aumentar os pedidos de socorro ao INEM em contexto de maus tratos, violência doméstica e negligência. Dados divulgados pela primeira vez no portal da transparência do Ministério da Saúde revelam que, até ao final de novembro, o INEM registou 1939 ocorrências extra-hospitalares motivadas por este tipo de agressões. São cinco casos por dia e o número está muito próximo do balanço final para 2016 (1994 ocorrências). Em relação aos anos anteriores, a subida é marcada: em 2015, registaram-se um total de 1743 intervenções. Do lado dos hospitais, onde alguns casos acabam por chegar, notam-se duas realidades: por um lado, pode haver menos vergonha por parte das vítimas em pedir ajuda quando não se conseguem deslocar a cuidados de saúde pelo seu próprio pé. Por outro, os protocolos sedimentados nos últimos anos, também entre organismos da Saúde e da Segurança Social, permitem sinalizar mais precocemente as situações.
Dados mais detalhados fornecidos ao SOL pelo Instituto Nacional de Emergência Médica revelam que, entre as agressões em contexto familiar, as situações mais frequentes a motivar a intervenção dos serviços de emergência são os maus tratos físicos, 1520 casos até novembro. A maioria destes casos levou ao acionamento de meios de emergência e uma centena de situações foram encaminhadas para o número 144, a Linha Nacional de Emergência Social, ou para a equipa do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM, que intervém em termos psicológicos e de assistência social. O INEM contabiliza depois 165 casos de maus tratos sexuais, 187 de violência verbal e psicológica e por fim 67 situações de negligência por parte de familiares e cuidadores.
Fonte oficial do Instituto Nacional de Emergência Médica explica que atualmente os profissionais que respondem às chamadas para o 112 nos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) têm protocolos para despistar estas situações, nomeadamente a negligência, e que as autoridades são também alertadas. «Independentemente de haver lugar a um transporte à unidade hospitalar, se existe risco para menores, a situação é reportada às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens locais. Se não há transporte, por não se verificar necessário, e existe risco imediato para dependentes (menores, pessoas com debilidades, idosos), o INEM estabelece contacto com a Linha de Emergência Social», explica fonte oficial do instituto. E mesmo que alguns pedidos de socorro sejam feitos pelas próprias vítimas, a perceção das equipas de emergência é que muitas vezes a intervenção de terceiros é decisiva. «Nos casos de negligência e maus tratos, os pedidos de ajuda são muitas vezes realizados por familiares ou vizinhos que têm conhecimento destas circunstâncias», explica o INEM.
Os registos do Instituto Nacional de Emergência Médica não permitem discriminar a idade das vítimas ou quantas vítimas acabaram por ter de ser hospitalizadas, apenas atestam que pelo menos 87% das situações motivaram o acionamento de meios de emergência, ou seja, exigiram assistência presencial. Helena Almeida, diretora clínica do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca até ao passado mês de outubro e com vários anos de experiência no acompanhamento a situações de risco através do Núcleo Hospitalar de Apoio às Crianças e Jovens em Risco do Amadora Sintra, não tem perceção de a violência estar a aumentar, mas também não vê uma regressão dos números. Mais notório é o facto de o despiste, quando tal é possível, estar mais agilizado por parte dos profissionais. «Creio que, por um lado, as pessoas têm menos vergonha de pedir ajuda e, por outro lado, o INEM está mais atento na identificação das situações».
O certo é que os números do INEM são só mais um contributo para compreender a dimensão desta violência familiar no país. Se casos relacionados com adultos tendem a chegar por via do 112, no caso das crianças, a médica sublinha que muitas vezes as situações de negligência ou maus tratos chegam através da escola, de professores a funcionários que notam algum sinal estranho como uma marca no corpo. E estes casos acabam por não entrar para as estatísticas nem existe uma contabilização. «No nosso hospital chegamos a ter 200 a 300 crianças em contexto de maus tratos e negligência e não classificamos nestes casos as situações relacionadas com a pobreza extrema», diz Helena Almeida.
Os maus tratos invisíveis
Se o flagelo da violência doméstica tem sido mais debatido, a médica acredita, porém, que as situações de negligência e abandono, em particular de idosos, também devem merecer reflexão. No caso da negligência, Helena Almeida assinala que importa ter em conta que não acontece só no seio da família mas também em lares, de onde por vezes chegam idosos desnutridos ou com muitas escaras. Já o abandono causa alguma perplexidade. «É uma realidade impressionante, chocante mesmo. Verifica-se durante todo o ano mas mais no período do verão, em que algumas pessoas deixam os seus familiares nos hospitais, e também na altura do final do ano. No Natal há até uma tentativa de acelerar as altas mas no fim do ano acontece o oposto. Notamos que as enfermarias ficam mais vazias pelo Natal e tornam a encher no fim do ano», diz Helena Almeida.
As situações são variadas, desde quadro complexos como demências em que os cuidadores manifestam cansaço mas outras mais simples. Um exemplo? «Um idoso que entra no hospital com uma infeção urinária e está pronto para ter alta dois ou três dias depois mas não aparece ninguém para o vir buscar», diz Helena Almeida, que acredita que isto também resulta de uma mudança cultural na forma como a sociedade lida com os mais velhos.
Embora esta realidade em particular não esteja estudada a nível nacional, este ano a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) promoveu a primeira edição do Barómetro de Internamentos Sociais (ver texto ao lado). No dia 2 de outubro, data do primeiro levantamento a nível nacional, 655 camas do SNS (5%) do total, estavam ocupadas por pessoas que já tinham critérios para ter alta clínica mas permaneciam nos hospitais por motivos sociais, da falta de resposta em lares ou cuidados continuados ou falta de resposta da família. Alexandre Lourenço, presidente da APAH, admite que poderia ser feito um levantamento idêntico para os casos de natureza social que dão entrada nos hospitais, afim de conhecer melhor esta realidade da forma como os cuidados de saúde intervém nestas áreas. O responsável acredita que importa dar mais atenção aos problemas dos idosos. «Os hospitais têm a obrigação de denunciar as situações ao Ministério Público mas tal como foi feito um trabalho de sensibilização e prevenção da violência contra crianças e jovens, até nos cuidados primários, podia apostar-se na constituição de comissões de proteção de idosos para estruturar melhor a intervenção». O administrador hospitalar defende que não só maus tratos como negligência deviam ser objeto de mais intervenção, por exemplo fiscalizando mais situações como idosos institucionalizados em lares com internamentos recorrentes.