A estética da intoxicação: Georg Trakl e a cocaína

O poeta Georg Trakl, cuja insanidade culminou, após várias tentativas frustradas de suicídio, numa autoinduzida overdose de cocaína, viveu uma vida de inusitada tristeza, que não se ocultou da sua obra poética. O seu conterrâneo e contemporâneo Rainer Maria Rilke considerava a sua obra doce e comovente

Quando as notícias da morte de Georg Trakl, associada às desgraças da Grande Guerra, chegaram à elite cultural de Viena, o célebre intelectual Karl Kraus anunciou sem surpresa que dificilmente o poeta fora vítima do conflito armado. Para ele “era incompreensível que Georg Trakl pudesse manter-se vivo, seja de que modo for”. A insanidade de Trakl culminou, após várias tentativas frustradas de suicídio, numa autoinduzida overdose de cocaína, em Novembro de 1914. Na sua ficha médica, acompanhado por um ponto de exclamação sardónico, lia-se: Suicídio por intoxicação de cocaína!

Dias antes da sua morte, Georg Trakl viajara num comboio que partira do Império Austro-Húngaro em direção à fronteira da Ucrânia com a Polónia, onde fora destacado como farmaceuta militar. A experiência que tinha até ao momento fora num estaleiro em Rava-Ruska, nos sangrentos dias de Setembro, onde fora assignado como oficial médico para cuidar de noventa soldados gravemente feridos. Desse evento perturbador, Trakl confessou em carta ao seu editor Ludwig von Ficker ter quase perdido o juízo num episódio em que, após ver como um dos soldados feridos apontava e disparava uma espingarda à face, saíra do estaleiro a correr apenas para ser confrontado pelos camponeses locais, a baloiçarem sem vida, enforcados nas várias árvores da povoação. Mas como Karl Kraus mencionara, a breve e traumática experiência de Trakl no conflito armado dificilmente teria pesado na decisão do mesmo para acabar com a própria vida. Talvez a Grande Guerra fosse apenas o zénite da existência vulnerável deste poeta maldito, que batalhou por encontrar a sua sanidade mental.

Georg Trakl nasceu em Salzburgo em 1887 e morreu na Cracóvia em 1914. Pelo meio, viveu uma vida de inusitada tristeza, que não se ocultou da sua obra poética. O seu conterrâneo e contemporâneo Rainer Maria Rilke considerava a lírica de Trakl doce e comovente; e afirmou em carta a von Ficker, após a morte do autor, como a leitura de Sebastian im Traum (1915) lhe revelara a irrevocável singularidade que Trakl possuía, e como qualquer leitor que o lesse sentiria o agouro crescente a abater-se sobre o poeta. Ludwig Wittgenstein também prezou desde cedo a escrita de Trakl, encantado pela sua beleza indecifrável. Mas nenhum deles chegou a conhecer pessoalmente o poeta. Essa é a diferença com Karl Kraus, que acompanhou de perto o surgimento e desvanecimento de Trakl, e terá seguramente baseado a afirmação polémica sobre a sua morte no que sabia dele como pessoa e não tanto nas suas características enquanto poeta. Desde a sua chegada a Viena em 1908, Georg Trakl criara uma reputação de inadaptado social nos círculos intelectuais. Uma tendência autodestrutiva que se refletia no consumo abusivo de drogas legais e ilegais, na incapacidade de manter um emprego, na sua melancolia excêntrica e pela íntima e peculiar relação com a sua irmã Grete, uma relação julgada por muitos como abjeta e imoral. Mudara-se para Viena para estudar farmácia, movido pelo desejo de conseguir sedativos como o veronal e a morfina com facilidade, e foi lá que desenvolveu o vício pelo ópio e a cocaína.

Em 1910, já com o título de farmacêutico, trabalhou num hospital em Innsbruck, cidade onde escreveu aquela que é considerada a sua melhor poesia, garantindo um lugar inabalável no cânone do expressionismo austríaco. A escrita de Trakl caracterizou-se por uma linguagem simples e clara, que carregava um imaginário obscuro e avassalador, perturbado e sensível e que prestava particular atenção à passagem dos dias e a fragmentação da consciência. Trakl foi desenvolvendo uma visão objetiva, matura, e apesar da apreciação arbitrária dos seus símbolos, deixou um trabalho coeso que expressa uma espécie de protesto contra o destino apocalíptico da humanidade.

Em setembro de 1914, quando fora enviado para cuidar dos feridos de Rava-Ruska, Trakl já tinha em mente que adquirir cocaína seria bastante simples. Inicialmente isolada por Friedrich Gaedcke enquanto componente das folhas de coca dos Andes em 1855, pelo final do século XIX a cocaína era já considerada uma substância maravilhosa, utilizada nas mais diversas tarefas desde anestesiante local nos consultórios de dentistas a refrescante estrela em salões de festa, engarrafada como o Vinho Mariani ou a Coca-Cola. Com a Grande Guerra a causar estragos por toda a Europa, as suas aplicações médicas aumentaram, principalmente o seu uso como anestésico. A procura acelerou de modo exponencial a produção e difusão, e enquanto na primeira década do século XX o uso recreativo da cocaína se limitava apenas a grandes metrópoles, após o primeiro ano da Grande Guerra já era possível arranjar cocaína em qualquer canto recôndito da Europa, como era o caso da aldeia para onde Georg Trakl fora destacado. No rescaldo da guerra, a distribuição caótica dos stocks de cocaína contribuiu para a tornar na droga de luxo dos socialites europeus durante os loucos anos vinte.

E apesar de tudo, não há registo de uma referência direta ao consumo de cocaína na obra de Georg Trakl. Não há menção à clarividência, nem à euforia nem à vitalidade comumente associadas à intoxicação com a substância. Qualquer desses factores ou mesmo as conotações modernas e científicas associadas ao termo “cocaína” não se adequariam à sua poética. Do mesmo modo, Trakl manteve-se abstémio, passe o trocadilho, a referir na sua escrita outras substâncias como o álcool, clorofórmio, veronal, morfina ou ópio, apesar de serem substâncias que consumia assumidamente e com veemência. Ao contrário de outros escritores e poetas contemporâneos que viam as referências a drogas como um instrumento de estilização, a escrita de Trakl destaca-se por carecer desse tom confessional, e o impacto dos estupefacientes vê-se não como um mero facto biográfico, mas na dicção e na cadência da sua poesia. Isto poderia ser apenas uma curiosidade, não fosse pela contradição entre a omissão dos psicoativos e a proeminência dos efeitos dos mesmos na sua poética, nomeadamente na temática delirante e obstinada da decadência do mundo e da humanidade.

Trakl sofria surtos depressivos que o forçaram a visitar e enfrentar inúmeras vezes a beira do abismo. O seu comportamento instável assombrou-o durante toda a vida, e o abuso de substâncias psicotrópicas, mais do que uma causa, terá sido um sintoma da sua fragilidade mental. Em Outubro 1914, na Ucrânia, após assistir às barbaridades da Guerra contra a Rússia, Georg Trakl tentou matar-se, encostando um revólver à têmpora, mas os seus colegas conseguiram evitá-lo. A seguir ao acontecimento foi internado num hospital militar da Cracóvia, onde escreveu a Ludwig von Ficker referindo o poço depressivo onde se encontrava e pedindo algum conselho para seguir em frente. Ficker urgiu Trakl a entrar em contacto com Ludwig Wittgenstein, quem certamente o saberia ajudar. Dias mais tarde, após saber do sucedido, Wittgenstein visitou o hospital onde o poeta austríaco estava internado, apenas para descobrir que este se suicidara com uma dose fatal de cocaína. Georg Trakl tinha 27 anos.

 

GRODEK
(tradução de João Barrento)

Ao entardecer, as florestas outonais
ecoam de armas mortíferas, e as planícies douradas
e os lagos azuis, por sobre os quais rola
um sol sombrio; a noite abraça
guerreiros moribundos, o lamento selvagem
das suas bocas destroçadas.
Mas, em silêncio, num fundo de salgueiros,
juntam-se nuvens rubras, onde um Deus irado habita;
e o sangue derramado, e frescura lunar;
todos os caminhos desembocam em negra podridão.
Sob dourada ramagem da noite e sob estrelas
a sombra da irmã vacila pelo bosque de silêncio,
para saudar os espíritos dos heróis, as cabeças ensanguentadas;
e levemente, nos canaviais, soam as flautas sombrias do outono.
Oh, dor orgulhosa! Vós, brônzeos altares,
Uma dor portentosa alimenta hoje a chama escaldante do Espírito,
Os filhos que ainda hão-de nascer.