Demos o salto e, ainda que tenhamos caído no mesmo lugar, há sempre a expectativa que, ou se frustra, ou tem de acomodar-se. Dois mil e dezoito em breve não será mais uma novidade. Os cumprimentos já não irão estender-se recíprocos a um ano inteiro. Entretanto, se está tudo no mesmo lugar, isso não nos impede de passar com ar de inspectores, tirando medidas, inspirando mais fundo e pisando como se a gravidade deste lado pudesse aliviar-nos um pouco do peso que arrastámos até 2017. Talvez haja até uma tontura própria destes que, sem fazer muito por isso, dobraram um século, um milénio, e dão por si a viver com números que envergam um fato espacial, que têm um design e mesmo uma sonoridade algo futurista.
Nestas coisas, quem já foi para lá da idade do deslumbramento e não caiu ainda na idade da eterna nostalgia, nem foi crucificado por um fígado que não perdoa a menor gracinha, um gole de superstição ou zurrapa festiva, nem a lingerie que vestem as nossas ilusões para puxar para si um pouco de sorte, entende que a ideia de cortar o tempo em fatias foi uma invenção genial. Mesmo que se fique só pelo estímulo. Como notou Roberto Pompeu de Toledo – e não Drummond, como é costume ler-se na internet –, a ideia de cortar o tempo veio de algum empreendedor que descobriu como industrializar a esperança fazendo-a funcionar no limite da exaustão. “Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para adiante vai ser diferente…”
E basta olhar para ele, ali despido como pele de cobra, ver como 2017, esse Ano Velho, se recolheu, para saber o destino que levará este ano ao fim de mais trezentos e sessenta e cinco dias em Portugal – e aqui, de passagem, cite-se uma das farpas de Eça: ia enfastiado e embrutecido; percebia-se que ia de cá pela grosseria dos remontes das botas; (…) ia ressequido da falta de banhos; palitava os dentes com as unhas; sabia ajudar à missa; assoava-se a um lenço vermelho; perguntava a todo o propósito que há de novo? E era reformista. Estava alusitanado. – O Ano Novo vinha da frescura do céu”.
Mas para acabar de vez com esses fuminhos da lusa sentimentalice, esse logro dos incensos, tentativas de entrar com pé direito, o melhor é ir de repelão, entrar por 2018 a dar com os queixos no chão, e desejar a tudo e a todos o mesmo que Agustina desejou certa vez: “Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse no ventre morte, peste e guerra. Morte à senilidade idealista e à retórica embalsamada; peste para um certo código cultural que age sobre os grupos e os transforma em colectividades emocionais; guerra à recuperação da personalidade duma cultura extinta que nada tem a ver com a cultura em si mesma.”
Depois, enfim, até a irritação se modera. Estamos, afinal, mais velhos: essa é a única, a fatal conclusão que nos aguarda. E assim, trocando por miúdos, a Sibila reformula: “Eu desejaria que o Novo Ano trouxesse nos braços a vida, a energia e a paz. Vida o suficientemente despersonalizada no caudal urbano para que os desvios individuais não sejam convite ao eterno controlo e expressão das pessoas; energia para desmascarar o sectarismo da sociedade secularizada em que o estado afectivo é mais forte do que a acção; paz para os homens de boa e de má vontade.”
Com as passas, a champanha, e carraspanas que vão servindo sempre aos homens como jeito de empurrar, às vezes de abater uma mula que não quer dar outro passo, para, depois da ressaca, fingir que se comprou outra, há as resoluções de fim de ano. Mark Twain, um desses tipos que deixava as frases nervosas, sabendo que tinham sérias hipóteses de ficarem famosas, nunca se cansou de fustigar essa conversada das resoluções. Numa das vezes que fez um discurso a propósito de uma ocasião destas, chutou a coisa desta maneira: “O Ano Novo é uma instituição anual inofensiva, e de nenhuma serventia em particular senão como bode expiatório para bêbados promíscuos, chamadas para os amigos e resoluções farsolas”.
Noutra ocasião, foi igualmente ácido e aproveitou o primeiro dia de algum ano perdido há mais de um século, para notar: “Ontem, todos fumaram o seu último charuto, empinaram o último copito e fizeram um juramento final. Hoje, somos gente pia e uma comunidade exemplar. Daqui por trinta dias, teremos lançado às urtigas a intenção de nos reformarmos, e voltaremos a contar com as nossas velhas falhas e vícios levando-as um pouco mais longe do que antes.”
É a infância possivelmente aquilo de que estamos sempre à procura. Ou a juventude, não aquela em que andamos atribulados, cheios de borbulhas e complexos, ânsias e desejos que, sendo naturais e proveitosos, escondemos como a crimes, fazendo de tudo um castigo. Dando um passo ao lado, e falando das coisas de idade, Julio Ramon Ribeyro escreveu à faca nas suas “Prosas Apátridas” algumas das mais universais sensações que tanto nos isolam, fazem de nós seres embiocados, aperfeiçoando-nos naquela noção de Pascal de que os problemas do Homem vêm da sua incapacidade para ficar sentado quieto, a sós, num quarto. Disse Ribeyro que “a certa idade, que varia segundo as pessoas mas que se situa por volta dos quarenta, a vida começa a parecer-nos insípida, lenta, estéril, sem atractivos, repetitiva, como se cada dia não fosse senão o plágio do anterior. Algo em nós se apaga: entusiasmo, energia, capacidade de fazer planos, espírito de aventura ou simplesmente apetite de prazer, de invenção ou de risco”. É aqui que uma pessoa dá por si mais vulnerável aos avanços desses doutores de esquina, os que descem os óculos para a ponta do nariz e vêm mirar-nos do alto da sua mal enjorcada experiência de vida e não resistem nunca à tentação de diagnosticar-nos depressões, patologias mais ou menos benignas que se curam com pacotes holísticos, saídas com eles, meditações, retiros de fim-de-semana com programas para grupos e seitas mais ou menos informais.
Para Ribeyro aquele é “o momento de fazer uma paragem, reconsiderar a vida sob todos os seus aspectos e tentar tirar partido das suas fraquezas. Momento de suprema eleição, pois trata-se, na realidade, de escolher entre a sabedoria e a estupidez”.
Seja como for, agora que já se acabou a euforia desalmada, depois de termos assistido ao mesmo espectáculo gratuito de outros anos – “Feliz Ano Novo! diz o meu irmão hipócrita/ e vomita o que comeu e bebeu o ano inteiro.// Nas igrejas, boates e macumbas/ balimos e bailamos, as ovelhas/ que os filtros da redenção embebedaram./ E lançamos ao mar o tributo florido de nossa gratidão. E os deuses nos desprezam. (Lêdo Ivo) –, agora podemos deter-nos nessa ficção de que começou alguma coisa. Ficção chamou-lhe Fernando Pessoa, que viu como as “curvas do rio escondem só o movimento”, como é tudo o mesmo rio, e começar é só um passo para que se prepara o pensamento, vale pensar um pouco no que há de mais especifico a este tempo do qual Steiner disse há uns anos que perdeu a habilidade de começar de novo.
“Já não temos começos. Incipit: a orgulhosa palavra latina que designa o início sobrevive no poeirento vocábulo inglês inception. O escriba da Idade Média assinala o início de uma linha, o novo capítulo, por meio de uma capital iluminada. No seu turbilhão dourado ou carmim, o iluminista de manuscritos dispõe de animais heráldicos, dragões matinais, cantores e profetas. A inicial, significando a palavra, o começo e o primado, é uma fanfarra. Proclama a máxima de Platão, que nada tem de evidente: a origem é a excelência maior de todas as coisas, naturais e humanas. Hoje, entre as inclinações ocidentais – observe-se a presença muda da luz matutina deste mundo –, os reflexos, as inflexões da percepção são os da tarde, do crepúsculo.”
Talvez devêssemos ter começado por aqui, o que não seria difícil se, entretanto, tivesse havido desenvolvimentos. Não houve. Há cada vez mais um desejo generalizado de pronunciar óbitos, de declarar a morte a torto e a direito, na esperança, talvez, de que isso livre o caminho para que algo nasça. “Jamais haverá ano novo,/ se continuar a copiar os erros dos anos velhos, disse um qualquer na internet tentando passá-lo como versos do Camões. Não há erro maior do que antecipar o desespero. Passar da industrialização da esperança aos pequenos artesanatos e oficinas do descrédito, da descrença. Anda assim o mundo, num desconsolo tal, infamado, doido por lançar a suspeita sobre os outros, talvez para aliviar-se do esforço de exigir a si mesmo uma resolução para levar até ao fim. E se Steiner reconhecia que o seu argumento era também ele, no seu todo, vulnerável, expondo-se ao risco “daquilo que Kierkegaard chamava ‘as feridas da negatividade’”, não deixa de ser mais audível hoje que nunca como, para lá dos testemunhos da filosofia ou das artes, se generalizou entre nós esse eco “dos tempos de encerramento dos jardins do Ocidente”. Mas então e para terminar, apetece citar Manuel Resende e um poema do seu livro “O mundo clamoroso, ainda”: “Longe de mim querer corromper a juventude,/ É um trabalho que sobreleva as/ Minhas capacidades./ Antes cicuta./ Mas tenho que explicar o sentido/ Da palavra “desesperança”.// É uma esperança negativa./ A gente senta-se num cais/ E deixa o sol trabalhar./ O sol minúsculo, isto é, o calor na pele./ Chamo a isto a experiência mínima.// Feito isto:/ Venha de lá então/ Essa catástrofe.”