Sucedem-se os relatos de dificuldades nos hospitais com o cenário já habitual nesta altura do ano de macas nos corredores, cancelamento de cirurgias para libertar camas e profissionais de saúde e centros de saúde com horário alargado. Com o SNS a acusar maior pressão, os últimos dados disponíveis revelam, porém, que a fase mais crítica da epidemia da gripe ainda está para chegar.
Quando e com que gravidade, é sempre uma incógnita, mas o previsível é que a sobrecarga nos hospitais seja gradualmente maior, isto numa altura em que a afluência tem estado dentro da normalidade para a época do ano – até abaixo de anos anteriores – mas a margem já não é muita: por esta altura, já foram por exemplo ativadas a maioria das camas extra previstas no plano de contingência. E há outras medidas a serem tomadas pelos hospitais. O Centro Hospitalar Lisboa Norte, por exemplo, fez saber que, além de ter instalado 40 camas extra, teve de contratualizar externamente 60 camas para doentes que já tinham condições de ter alta mas estavam à espera de vaga na rede de cuidados continuados ou em lares, ocupando camas necessárias para doentes que dessem entrada numa fase aguda no Santa Maria ou no Pulido Valente.
Gripe em tendência crescente
O balanço feito esta semana pelo Instituto Ricardo Jorge sobre a evolução da epidemia da gripe revela que a doença mantém uma baixa intensidade mas está agora em tendência crescente. O fim de dezembro foi bastante mais brando do que o período homólogo e em 2017, por esta altura, já tinha havido dois picos de casos de gripe, acompanhados de uma mortalidade acima do esperado. Dizer com certeza se a gripe se vai manter moderada até ao final da época ou se vai assumir proporções mais graves, como faz temer a experiência do último inverno no hemisfério sul, é impossível. Filipe Froes, pneumologista e consultora da DGS para a área das infeções respiratórias, explica, porém, que as próximas semanas serão decisivas e tenderão a trazer um crescendo de casos e mais graves. Isto porque, até agora, têm dominado os vírus da gripe do tipo B, «a primeira guarda», mas o alerta a nível internacional foi que esta época seria marcada pelo vírus A H3N2, mais agressivo. «Estamos no início do campeonato», diz Froes. «O que é espectável é o aumento crescente da atividade gripal com a substituição da estirpe circulante da B para a A H3N2, temos de estar preparados para maior taxa de ataque, doença mais grave e muito maior taxa de internamento».
Uma época em que a epidemia teve uma dinâmica idêntica foi em 2014/2015, com uma sucessão de mortes de doentes em serviços de urgências enquanto aguardavam atendimento. Nesse ano, o Instituto Ricardo Jorge estimou que gripe e frio tenham contribuído para 5591 mortes acima do esperado, em particular de idosos. «O vírus da gripe do tipo B da linhagem Yamagata foi predominantemente detetado em co-circulação com o vírus da gripe do subtipo A (H3), este último em número crescente no final do período epidémico», lê-se no relatório final dessa época gripal, que foi a mais intensa dos últimos anos e deixou o Ministério então liderado por Paulo Macedo sob fortes críticas.
No inverno passado, a gripe não foi muito mais branda. Dominou o vírus da gripe A (H3), que se espalha mais rapidamente e provoca casos mais graves, e o Instituto Ricardo Jorge calculou um excesso de mortalidade de 4.467 óbitos, isto além da morte habitual nos meses frios do ano, sempre superior à dos meses mais quentes. Os meses de janeiro e dezembro registam historicamente em Portugal o maior número de óbitos, que costuma superar as 10 mil mortes/mês, isto quando no verão o número de óbitos baixa para a casa dos 7/8mil.
Pneumonias – a principal causa de morte por doença respiratória – mas também o facto de as temperaturas frias contribuírem para descompensar outras doenças como diabetes ou do foro vascular, havendo registo de mais ataques cardíacos de inverno, são outras explicações para o fenómeno.
Graça Freitas, diretora geral da Saúde, tem sublinhado que o país atravessa, até ao momento, uma gripe moderada.
‘Ainda não temos o caos’
Ao SOL, a responsável salienta igualmente que a evolução tem sempre um lado imprevisível, mas diz estar confiante na capacidade de resposta do sistema e também numa trajetória da gripe menos negativa face ao que era esperado com base no inverno no hemisfério sul, onde uma estirpe particularmente agressiva do vírus A H3N2 levou a um aumento significativo de hospitalizações em países como a Austrália. «Neste momento, 85% dos vírus são do tipo B, pelo que se não houver uma mudança drástica, vamos ter uma época moderada», diz Graça Freitas.
A responsável assinala, contudo, que há outros motivos que contribuem para uma maior pressão sobre os serviços de saúde, tais como outras infeções respiratórias ou até intestinais, causadas por enterovírus. Tudo vírus que têm condições mais favoráveis à sua propagação no tempo frio, pelo que a previsão meteorológica para os próximos dias sugere mais problemas. Quanto às dificuldades que têm sido relatadas no SNS, Graça Freitas fala de uma sobrecarga normal nesta altura do ano, mas que não é maior do que em anos anteriores. «Neste momento não temos o caos, não há esse cenário drástico», frisa.
A leitura tem sido corroborada pelos responsáveis das administrações regionais de saúde mas contestada por exemplo pelo Sindicato Independente dos Médicos, que tem questionado por que motivo não foram ainda contratados para o SNS cerca de 700 médicos recém-especialistas que concluíram o internato no ano passado. O SOL tentou perceber junto da tutela quando serão abertos esses concursos, sem resposta. Alguns médicos já terão sido entretanto contratados e outros estão vinculados às instituições como internos.
Já à Ordem dos Médicos têm continuado a chegar declarações de isenção de responsabilidades, como noticiou o Expresso. O SOL sabe que há hospitais onde responsáveis de serviço estão a assinar as minutas de ‘legítima defesa’, continuando em funções, mas para alertar para a necessidade de maior reforço de meios no SNS não só nesta altura de contingência.
Movimento ‘simbólico’
O Bastonário Miguel Guimarães fala de um movimento «simbólico», que visa alertar para as carências do SNS. A Ordem está a fazer um levantamento concreto por especialidade que espera divulgar nos próximos meses. Por agora, é a situação nos serviços de urgência que merece maior preocupação. «A situação está a agravar-se em muitos hospitais», diz ao SOL Miguel Guimarães, que teme maiores dificuldades no fim de semana. Para o médico, o alargamento de horários nos centros de saúde, de forma a descongestionar urgências, devia ter começado mais cedo e manter-se durante todo o ano, para que as pessoas pudessem ir ganhando confiança nesta reposta em vez de se irem ao hospital.
Agora, resta reforçar as equipas nos hospitais, sublinha Miguel Guimarães, alertando para a exaustão que já se vive em muitos serviços. O bastonário defende ainda que, além das camas extra abertas no SNS, sejam contratualizados mais vagas com o setor social neste período de contingência, até para os doentes que estão a aguardar vaga em cuidados continuados – de acordo com os dados da tutela, no início desta semana havia 1477 doentes à espera de vaga. «Outra medida obrigatória é mais informação. As pessoas têm de ter dados sobre que centros de saúde estão abertos e que valências têm e os tempos de espera reais nas urgências. Sei de algumas unidades onde o tempo de espera para uma pulseira amarela foi de seis horas e esses valores não surgem na plataforma do Ministério da Saúde».