O presidente angolano lançou ontem um balde de gelo nas águas frias em que as relações entre Angola e Portugal se têm mantido nos últimos meses, principalmente desde que João Lourenço sucedeu a José Eduardo dos Santos na presidência do país. Tudo por causa do julgamento do ex-vice-presidente Manuel Vicente em Portugal, marcado para 22 de janeiro.
“Existe um acordo judiciário no quadro da CPLP que permite que este e outros processos a decorrer em Portugal possam ser transferidos para a jurisdição de Angola, esse pedido foi feito por Angola, mas Portugal, lamentavelmente, não satisfez o nosso pedido, alegando, não confiar na justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos este tipo de tratamento”, disse João Lourenço durante a entrevista coletiva que deu ontem em Luanda, para assinalar os 100 dias no poder.
Lourenço foi explícito nos termos, ou Lisboa decide enviar o processo para Angola, ou haverá retaliações. “A seu devido tempo Portugal tomará conhecimento das posições que Angola vai tomar. O que é preciso para que as relações entre Angola e Portugal voltem aos bons níveis do passado recente? Apenas um gesto, esse gesto é remeter o processo para Angola. É satisfazer o pedido de Angola para que o processo seja remetido para que as autoridades angolanas tratem do caso”.
No entanto, de acordo com as declarações ao i do ativista e investigador Rafael Marques, a apreensão de Portugal em relação à justiça angolana até terá razão de ser, pois existe uma lei aprovada em 2015 que poderá permitir que o caso do ex-vice-presidente seja arquivado.
“Caso Manuel Vicente seja julgado em Angola, em princípio não deverá haver julgamento porque está abrangido pela lei da amnistia. É um crime anterior a 2015, está abrangido pela lei da amnistia, logo não haverá julgamento”, disse.
Para o jornalista e comentador Reginaldo Silva, falando ao i, João Lourenço “está a ganhar tempo”. Mesmo “mantendo esse tom, digamos essa agressividade”, o chefe de Estado de Angola “volta a abrir a porta”, dizendo: “Nós não queremos que Manuel Vicente não seja julgado, nós não queremos arquivar o processo”.
O facto de não mostrar qual será a reação de Angola, no caso de não haver resposta satisfatória de Portugal, é interpretado por Reginaldo Silva como um sinal de que “ele também está sem saber muito bem como reagir, caso efetivamente o processo vá para a frente e eventualmente Manuel Vicente venha a ser condenado”.
Reginaldo Silva reconhece, no entanto, que “há uma agressividade no tom” e que o “nível de crispação atingiu um patamar muito complicado”. E isso pode chegar àquilo a que um ministro angolano já se referiu e o jornalista relembra, “a possibilidade de haver corte de relações diplomáticas.
Silêncio em Lisboa As declarações de João Lourenço foram recebidas até agora sem comentários pelo governo português. Entre os partidos políticos, também o CDS e o PCP preferiram remeter-se ao silêncio.
Da área do governo, o deputado socialista Ascenso Simões mostrou-se favorável ao envio do processo de Manuel Vicente para Angola: “Confesso a minha preocupação com o facto de não haver em Portugal a ponderação suficiente que aconselhe a que Manuel Vicente seja julgado em Angola. Trata-se de uma evidência decorrente dos acordos de cooperação.” Para este membro da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia da República, a justiça portuguesa “trata a matéria com os pés – é cega, mas não devia ser burra”.
Maria Manuel Rola, do BE, lembrou que “em qualquer Estado democrático há separação de poderes e não há interesse económico algum que possa imiscuir-se nessa divisão e interferir com a independência do poder judicial face ao poder político”.
Por seu lado, o deputado Paulo Neves, do PSD, salientando a “enorme proximidade” entre Portugal e Angola e o facto deste ser “um país muito importante para Portugal”, as autoridades devem “insistir” com Luanda “que no nosso sistema político/constitucional os governos não podem ter qualquer intromissão na Justiça”.
*Com Sebastião Bugalho e Filipa Traqueia