Salvador Sobral teve alta na semana passada, mas o transplante cardíaco do vencedor da Eurovisão estará longe de ser a única história de sucesso na transplantação em 2017. Dados a que o i teve acesso revelam que houve mais dadores e mais transplantes, isto apesar de Portugal enfrentar um desafio comum a muitos países: à medida que a medicina e a prevenção evoluem, tende a haver maior escassez de órgãos.
João Paulo Almeida e Sousa, presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, sublinha que, por isso, é cada vez mais necessário “ir ao encontro de todas as oportunidades de doação”. Com esse mote, são várias as estratégias em curso, desde agilizar os protocolos de colheita nos hospitais à participação do país, a partir deste ano, num programa inédito a nível internacional para facilitar a procura de oportunidades para a doação cruzada de rins em vida – quando um doente tem um familiar ou amigo disponível para doação mas que não é compatível consigo e é estabelecida uma ligação com outro par na mesma situação.
Começando pelos números, 2017 termina com um balanço “muito positivo”, sublinha João Paulo Almeida e Sousa. De acordo com os números preliminares fornecidos ao i pelo IPST, no ano passado foram feitos 893 transplantes no país, mais 29 do que no ano anterior. Foram possíveis graças a 351 dadores falecidos, uma subida face a 2016, e da colheita de 1011 órgãos, mais 8% do que no ano anterior e um valor recorde. O número de transplantes não bate o recorde de 2009 (928), mas é o maior registo desta década.
A área da transplantação renal continua a ser a que regista maior atividade, tendo passando de 499 rins transplantados para 527. Mas há uma subida expressiva nos transplantes pulmonares, menos frequentes: em 2016 foram feitos 26, e no ano passado 34. Houve ainda 47 portugueses a receber um coração, número em que se inclui o caso de Salvador – mais cinco do que no ano anterior. Regista-se apenas uma redução nos transplantes hepáticos.
Afinar procedimentos Com o objetivo de manter a trajetória crescente, 2018 trará algumas novidades. João Paulo Almeida e Sousa sublinha que dois despachos publicados no ano passado vão ditar passos importantes nos próximos meses.
Um dos diplomas, publicado em junho de 2017, veio determinar que todos os hospitais com atividade de doação e colheita de órgãos devem passar a ter normas definidas de acordo com uma matriz estabelecida pelo IPST. Almeida e Sousa explica que esses documentos estão agora concluídos e deverão permitir sinalizar mais potenciais dadores de órgãos nos hospitais. “Muitas vezes, os profissionais não estavam devidamente sensibilizados para todas as situações em que pode ser possível a doação e colheita, nomeadamente em pessoas com mais idade ou patologia associada mas que não é impeditiva.”
Dadores com coração parado em Lisboa O outro despacho que deverá garantir, no futuro, maior colheita de órgãos tem a ver com a chamada doação de coração parado. Até 2016, apenas eram colhidos órgãos em doentes que se encontravam em morte cerebral e permaneciam em suporte artificial de vida. A partir desse ano começou uma experiência-piloto no Hospital de São João com dadores falecidos em paragem cardiocirculatória, por exemplo, uma situação de enfarte potencialmente fatal que ocorra fora do hospital. Para que a colheita possa acontecer é vital uma articulação entre os hospitais e a assistência pré-hospitalar, e depois do sucesso no São João – um ano após a implementação tinham sido realizados 30 transplantes, mais do dobro face ao que estava previsto –, o programa vai ser agora estendido a Lisboa, ao Hospital de São José e a Santa Maria. No ano passado, do total de 351 dadores falecidos, 21 estavam em paragem cardiocirculatória, número que deverá aumentar este ano.
João Paulo Almeida e Sousa explica que este programa não abre só mais oportunidades de doação, mas pode ajudar à sobrevivência em alguns casos, já que pressupõe o acesso à técnica de oxigenação por membrana extracorpórea, que permite manter os órgãos oxigenados quando o coração está parado.
Na área da transplantação renal, a novidade é então o protocolo de cooperação internacional através da South Transplant Alliance. João Paulo Almeida e Sousa explica que a participação portuguesa no projeto, para já para intercâmbio da doação cruzada de rim com Espanha, será formalizada nas próximas semanas. “A procura de pares de dadores-recetores de dadores passa a ter uma base maior”, diz o médico. Por agora, os potenciais dadores têm de ser sempre alguém relacionado com o doente, seja o cônjuge, um amigo ou familiar. “Ao colocarmos os nossos pares de dadores-recetores que não são compatíveis entre si nesta base internacional, a probabilidade de encontrarmos situações compatíveis é maior.”
Tudo formas de dar a volta à falta de órgãos. No caso do transplante renal há cerca de 2 mil doentes em lista de espera, número que tem tido poucas oscilações. “Há alguns anos, a maior parte dos dadores eram indivíduos jovens, vítimas de traumatismo em consequência de acidentes de viação”, lembra João Paulo Almeida e Sousa. No espaço de uma década, os dadores vítimas de acidentes passaram de 80% a 20% do total, passando a ser dominantes os dadores que morreram em sequência de AVC. A melhoria quer na prevenção do acidente vascular cerebral quer na resposta de emergência e recuperação faz com que a mortalidade por esta causa tenda a diminuir. João Paulo Almeida e Sousa sublinha, assim, que os motivos que levam a procurar novas soluções são socialmente positivos, mas tornam a atividade de transplantação cada vez mais exigente.
À procura da autossustentabilidade Outro dos objetivos para este ano é diminuir o recurso à importação de tecidos. É o caso de córneas ou tendões, áreas em que Almeida e Sousa acredita que o país pode ser autossustentável. Todos os anos são feitos cerca de 900 transplantes de córnea e em 2017 foram importadas 200. Avançar para a cultura de córnea, técnica que permite conservar o tecido durante um mês, quando hoje tem de ser usado numa semana, é a meta para 2018. Vai ser criada uma sala especial para esse efeito no banco de tecidos do Hospital Pulido Valente, num investimento de 150 mil euros.