Ainda os Globos de Ouro não se tinham vestido de preto, ainda James Franco não tinha sido aniquilado por uma série de acusações de abusos depois de na cerimónia Beverly Hilton ter usado na lapela um pin de apoio ao movimento Time’s Up, já o #MeToo tinha chegado à ópera. De Florença, em vésperas de estreia do clássico “Carmen” de Georges Bizet no Maggio Musicale Fiorentino, a notícia de que no final Carmen não haveria desta vez de morrer, mas de matar o seu assassino. Isto na altura em que Ridley Scott decidiu alterar o seu mais recente filme de modo a fazer desaparecer Kevin Spacey de “All the Money in the World” – que ontem, no mesmo dia em que o fotógrafo Mario Testino e Bruce Weber eram suspensos pela Condé Nast por acusações de assédio engrossando uma lista negra de agressores que vai já nas centenas, voltou a ser notícia com o anúncio de Mark Wahlberg de que doara ao fundo do movimento Time’s Up o milhão e meio de dólares que recebeu pelas cenas adicionais que tiveram que ser gravadas. Entretanto, levantam-se já vozes exigindo que o final de “A Bela Adormecida” seja reescrito, com o argumento que já não estamos num tempo em de histórias de amor possam fazer parte beijos não consentidos. Aconteceu no Reino Unido em novembro do ano passado, com o pedido de uma mãe para que a escola retirasse o conto do programa.
Que lugar sobrará no futuro para filmes como “Belle de Jour”, o clássico de Buñuel em que Deneuve interpreta Séverine, uma jovem dona de casa aborrecida que ocupa as suas tardes a prostituir-se? “Este novo feminismo está agora a servir os interesses de um revisionismo cultural que não sabe quando ou onde deve parar”, criticou, citada pelo “Observer”, a psicanalista e autora Sarah Chiche, uma das 100 mulheres que – encabeçadas pelas atrizes Catherine Deneuve e Ingrid Caven e pela escritora Catherine Millet – assinaram uma carta aberta publicada no “Le Monde” na semana passada em que, em reação ao que já se descreve como uma caça às bruxas do assédio em Hollywood, afirmam não se reverem, enquanto mulheres, “neste feminismo que, além de denunciar o abuso de poder, assume [a forma de] ódio aos homens e à sexualidade”.
Por cá e antes de tudo e a dias de ter rebentado o escândalo que poria um ponto final na carreira de Harvey Weinstein, num movimento que a seguir arrastaria muitos outros, a atriz e encenadora Monica Calle escrevia no Facebook que queria que as suas filhas fossem “abordadas por homens”. Num segundo post, explicava:“Eu quero que as minhas filhas andem na rua e lhes digam coisas. Eu quero que as minhas filhas andem em transportes públicos e encontrem homens que se encostem a elas. Eu quero que as minhas filhas possam e sejam capazes de viver num mundo que não é fascista.”
“A violação é um crime” No texto que publicaram no “Le Monde” e que levantou mais do que uma onda, um tsunami de indignação – de feministas francesas como Caroline De Haas a atrizes como a italiana Asia Argento, uma das vozes que ousaram denunciar o poderoso Harvey Weinstein –, argumentam que “a violação é um crime”, mas que “tentar seduzir alguém insistentemente ou de forma desajeitada não é”. Da mesma maneira que também, escreviam no texto, reclamavam para os homens a “liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual” e afirmavam que “o cavalheirismo não é uma agressão machista”. Diziam ainda ter os “olhos abertos o suficiente para não confundir uma tentativa incómoda de escolher alguém com um ataque sexual”.
As reações foram violentas. Numa carta de resposta com De Haas como primeira subscritora, 30 mulheres voltavam-se agora contra elas, acusadas de, da sua bolha privilegiada, ignorarem a dura realidade de todas as mulheres que não o são. “Os porcos e os seus aliados estão preocupados? É normal. O seu velho mundo está a desaparecer. Muito devagar – muito devagar – mas inexoravelmente. Algumas reminiscências empoeiradas não vão mudar nada, até quando são publicadas no ‘Le Monde’”, reagiam, argumentando que a questão não é o que separa violação de assédio. “A violação não é ‘sedução aumentada’. Temos o direito básico de viver nossas vidas em segurança. Na França, nos Estados Unidos, no Senegal, na Tailândia ou no Brasil: e não é isto que acontece hoje. Em nenhum lugar”.
Na sua coluna de opinião no “Expresso”, a deputada Isabel Moreira não citava nem Deneuve nem de De Haas mas escrevia: “São sempre as pessoas. São sempre as mesmas pessoas que sentem repulsa por qualquer feminismo verbalizado por mulheres que se atrevem a ter poder económico. São muitas vezes mulheres que insistem na tese absurda segundo a qual só as pessoas de poucos recursos, de trabalhadoras têxteis a operárias de várias condições, devem merecer os efeitos de leis igualitárias […] São as mesmas pessoas que do alto da sua moral pretensamente representante dos fracos e das fracas odeiam Hillary Clinton, acusando-a de tudo o que nunca lhes ocorreu dizer de um político homem.”
#MeToo ou #PasMoi, haverá um lugar do meio, de debate, para o assunto que dominará o fim desta década num tempo que, é já impossível negar-se, será de viragem? Para a jornalista Agnès Poirier, que ontem tentava, num artigo publicado no “Observer”, analisar o feminismo francês em comparação com o anglossaxónico, é tudo uma questão de como se encaram “o sexo e os homens”. “Na França de hoje coexistem vários grupos feministas: o principal é o que segue os passos de Beauvoir, um que não está em guerra com os homens mas antes com a cultura machista, a desigualdade de género e a misoginia inerente às religiões”, escrevia. “Depois há uma importação recente do feminismo americano, que assume muitas vezes contornos oportunistas e de ‘ódio aos homens’, que fecha os olhos à misoginia religiosa, defendendo por exemplo o uso do véu islâmico […] decretando o que é aceitável como conduta.” Para a jornalista franco-britânica, está enganado quem julgar que este é um debate geracional. “Muitos millennials assinaram a carta de Deneuve. A divisão é política, ou mesmo ideológica.”