Lula e o golpe

Mandela foi preso e depois virou Presidente. Lula foi Presidente e pode virar preso

«O Mandela foi preso e depois virou Presidente». Lula da Silva evocou o histórico líder sul-africano no momento mais difícil da sua carreira política. Condenado pelo Tribunal Regional Federal, Lula viu o seu caminho estreitar-se. É verdade que ainda há recursos por decidir. Porém, com uma pesada condenação às costas, confirmada e aumentada por unanimidade pelo segundo coletivo de juízes, era preciso que a Justiça desse uma cambalhota olímpica para absolver o ex-Presidente petista. Pode acontecer, embora seja cada vez menos provável – sob pena que a justiça se afunde de mãos dadas com os políticos, no mesmo pântano de desconfiança, descrédito e degenerescência de onde alguns juízes pretendem resgatar o Brasil.

Ignorando a decisão dos tribunais e a Lei da Ficha Limpa – que proíbe cidadãos condenados em segunda instância de se candidatarem a cargos políticos – o Partido dos Trabalhadores confirmou Lula como o seu homem para reconquistar o Planalto. A decisão tem um objetivo: ‘recuperar a democracia e inocentar Lula’. O recurso à justiça popular como fonte de legitimidade, antagonizando os tribunais, é, para utilizar o vocabulário petista, «um golpe perigoso».

Apesar da sua base social ter mudado consideravelmente, um olhar sobre a história do PT – produto da conciliação de sindicatos, movimentos sociais, teologia da libertação, trotskistas e militantes da luta armada contra a ditadura – sugere que a radicalização e a confrontação são caminhos possíveis. Toda a retórica aponta nesse sentido. «E aqui vai um recado para a dona Polícia Federal e para a Justiça: não pensem que vocês mandam no país. Nós, dos movimentos populares, não aceitaremos de forma nenhuma que o nosso companheiro Lula seja preso», clamou o líder dos MST.

A paz social e o primado da Lei são danos colaterais da profunda divisão política que o país está a viver. Com eleições em outubro, apesar de a inflação estar controlada e de a economia ter finamente arrancado, há momentos de tensão no horizonte. A reforma da previdência, uma questão que muitos economistas consideram essencial para a sustentabilidade do Brasil, deve ir a votos no próximo dia 19 de fevereiro. Será uma oportunidade para contestar o poder e testar a força do que resta da coligação que suportou o PT.

Toda a estratégia do partido para reabilitar Lula tem assentado no pressuposto de que este é um caso político (um argumento familiar à opinião pública portuguesa). ‘Impedir a prisão de Lula, derrotar o Golpe’ lê-se em cartazes empunhados pelo povo petista. Mas dramatismo cresce e o volume aumenta quando mais do que perseguição politica, a narrativa do PT faz do Brasil o epicentro da histórica luta de classes: «Quem financiou o golpe foi a burguesia brasileira». A retórica galvaniza a esquerda internacionalista. Não é por acaso que em Porto Alegre, no acampamento dos apoiantes de Lula, Mercedes Gutierrez, uma madurista que esteve na última constituinte venezuelana, deixava o aviso: «Se cuida, imperialista! A América Latina vai ser toda socialista».

Há uma ‘cultura intelectual da revolução’, partilhada por muitos movimentos de esquerda nas Américas e não só, que deu origem a uma ‘comunidade transnacional imaginária’, capaz de globalizar combates políticos regionais.

Num momento em que o pêndulo parece afastar-se das esquerdas populistas, o Brasil como maior país da região é um ator central na definição política do bloco sul.

O futuro do país é incerto. A corrida eleitoral está baralhada. 

Mandela foi preso e depois virou Presidente. Lula foi Presidente e pode virar preso. A história do Brasil está a fazer-se à nossa frente.