Começou a época da lampreia e basta uma voltinha pelas notícias para dar de caras com algum desânimo. Em Mação, a câmara cancelou o festival da lampreia por causa da poluição no Tejo – e não é coisa de somenos, que o certame vinha acontecendo certinho nos últimos dez anos. No Mondego, o desassoreamento do rio parece estar a dificultar a subida do ciclóstomo – o nome dado aos peixes de boca circular e que tão bem fica ao bicho meio alienígena que tantos gostam de ver no prato. No rio Lima, diz ao b,i. um pescador, a lampreia está boa, como sempre, mas é pouca. Só no rio Minho há boas novas, para quem quer comer: a faina começou abençoada pela chuva mas a abundância da espécie tem feito descer o preço, o que não agrada assim tanto aos pescadores.
Se há quem guie o passar do ano pelas efemérides, festivais de verão e outros eventos culturais, para muitos a vida tem outra cor por causa da comida e, tal como é verão quando há caracóis, nada bate o dia em que torna a haver lampreia nos cardápios – seja arroz, à bordalesa ou assada na brasa, versão minimalista. Pois para quem aprecia a iguaria que mais caras de repulsa provoca a quem não está nem aí, esse dia chegou. A época da lampreia, que coincide com o período de desova da espécie, começou no início do ano e prolonga-se até ao final de abril.
Um bicho orientado
Delfim Gomes, motorista e pescador de lampreia no Rio Lima, é perentório: é arte, ou negócio, que «já não dá para viver como dantes». Tem 30 anos e anda há 11 na faina, quer na parte marítima do estuário do rio quer nas águas interiores, onde as técnicas de pesca do bicho são diferentes. Na parte marítima, usam-se redes à deriva. Já nas águas mais interiores, são usados muros antigos que funcionam como uma espécie de armadilha e só é permitido pescar de dia. Antigamente, a lampreia era pescada ao ramo, o que hoje não é legal. Atava-se uma pedra a uma ramo de loureiro e deitava-se ao rio para que a lampreia, quando viesse cansada de subir o leito do rio, ali se agarrasse para recuperar forças e zás. «Já foi», rimo-nos.
Para quem se debruce pela primeira vez sobre o peixe que gosta de ver no prato, há alguma magia na história e a lampreia, tal como outros peixes migradores como o salmão ou o sável, parece ser um animal ligado às origens. «Nasce no rio, cria-se no mar e volta ao lugar onde nasceu para morrer», resume Delfim o que aprendeu com o pai. Com um pouco mais de detalhe, diz a ficha da espécie no Infoescola que a lampreia, na sua fase larvar, pode viver até sete anos nos rios onde nasce. «Uma vez na água salgada, desenvolvem-se até atingir uma maturidade sexual, processo que pode chegar a um ou dois anos, para depois retornar à água doce, reproduzir e morrer.» E é nesta última viagem que algumas acabam no prato, temperadas com vinagre e vinho verde tinto. Mas porque é que antigamente é que era melhor? Delfim aponta dois fatores: por um lado, já é o segundo ano consecutivo que é pouca a lampreia no rio Lima, o que os pescadores mais antigos atribuem a uma espécie de crise a cada sete anos, justifica. Por outro lado, as gerações mais novas parecem ser menos apreciadoras. «Cheguei a vender lampreias a 18 contos, 85 euros», diz Delfim. Hoje andam a 20/30 euros a unidade, ainda que as primeiras da época tenham saído mais caras. E quem pesca gosta de comer ou já enjoou? «Gosto, claro, mas chega-me três vezes por ano».
Lampreia do Minho no Tejo
José Francisco gere um dos restaurantes mais cotados em lampreia da zona de Mação, ‘O Bigodes’, em Ortiga. Tem o rio a um quilómetro da cozinha, mas este é o segundo ano em que à partida não virá nenhum ciclóstomo do Tejo para o prato. A poluição é a grande culpada, ajudada pela seca. «Continuamos a servir lampreia, mas tem de vir do Minho ou do Mondego», conta o proprietário do estabelecimento. Acabam também por ter de recorrer à lampreia que vem de França, viva – a garantia de que é mesmo fresca. «Como os franceses não apreciam, exportam», conta José Francisco, que agarrou o restaurante há três anos. O mais complicado é ter de dizer a quem vem de propósito aos restaurantes junto ao Tejo que a iguaria foi pescada noutras paragens. «Ficam um bocadinho desiludidos». Os preços também não estão fáceis de gerir: este ano Francisco José já chegou a comprar lampreia a 60 euros enquanto tenta manter a tabela de 25 euros a dose. Por agora ainda não há lampreia no Tejo e geralmente a época começa um pouco mais tarde, mas José Francisco acredita que, mesmo que apareça, ninguém vai arriscar, da mesma forma que outros peixes de rio também já tiveram melhores dias por ali. E mesmo que os tachos lá vão continuando a fervilhar na cozinha, o proprietário acredita que este é um problema que as autoridades deveriam levar mais a sério. «Não estão a trabalhar bem o maior rio do país. Dizem que a poluição vem de Espanha, mas também começa cá e ninguém faz nada. Qualquer dia as pessoas deixam mesmo de vir, vão só para Coimbra e para Penacova e nós, que já somos das zonas mais pobres, ficamos ainda mais pobres. Isto não é coisa do povo português que se lamenta por tudo e por nada, é a realidade».
Arte secular do Minho
Em Vila Nova de Cerveira, o Aquamuseu do Rio Minho acaba de inaugurar a exposição A Pesca da Lampreia Marinha no Rio Minho, que estará patente até 31 de março. Carlos Antunes, biólogo e diretor do museu, fala ao b,i. de uma arte secular. Os primeiros registos oficiais de pesca no rio Minho são de 1914, mas há alguns escritos mais antigos que sugerem que os romanos já pescavam lampreia na Ibéria para levar para Roma, conta o responsável. Antigamente pescava-se à ‘fisga’, lembra Carlos Antunes, uma espécie de arpão que hoje só é permitido, para manter a tradição, num afluente do rio Minho chamado Teia, mas só do lado de Espanha. «Todos os anos são sorteadas cerca de 40 licenças para os pescadores espanhóis». Arte que se mantém é a das estruturas antigas de pedra que existem nas águas interiores entre Monção e Melgaço, chamadas pesqueiras e que são armadas com uma espécie de armadilha de nome botirão ou outra técnica designada cabaceira. A datação destas estruturas apontou para o século VIII, mais uma prova da antiguidade da pesca de lampreia no Minho. «Inicialmente pertenciam aos mosteiros mas depois passaram a ser particulares e vão passando de herdeiros em herdeiros», diz Carlos Antunes.
No rio Minho também se pesca com rede à deriva na parte marítima, na zona do estuário. E este ano, até ver, não há míngua à vista: há lampreia em abundância, o que fez baixar bastante os preços. Começaram a 50/40 euros e agora estão a 25/15 euros. E o pico da entrada de lampreia no rio é em março.
Se é natural que haja alguma rivalidade entre rios, com cada um a querer puxar a brasa à sua sardinha – passe a concorrência -, Carlos Antunes explica que uma das picardias locais é com a tal lampreia francesa. Para garantir que o produto é de origem minhota, a autarquia está a avançar este ano com um projeto pioneiro de rastreabilidade: a ideia é atribuir um código a cada lampreia pescada no rio Minho para que vendedores, intermediários, restaurantes e por fim o cliente final possa ter a certeza de que está a consumir o autêntico ciclóstomo do rio Minho. Já as apresentações são cada vez mais variadas, diz Carlos Antunes, até para cativar novos paladares. Conservas ou pizza de lampreia são algumas das novas experiências de degustação na região, que de resto é perita no ensopado e no arroz de lampreia mas também nos pratos à base de lampreia seca, peixe apanhado na parte de cima do rio. Depois de passar pela salmoura e pelo processo de secagem, é demolhada e dá azo a panados e outras iguarias. «Melhor que escrever é provar», conclui Carlos Antunes. Totalmente de acordo. Bom apetite.