O polvo já não é quem mais ordena

Os casos Fizz e Lex, se vieram provar que as magistraturas não são incorruptíveis, têm a virtude maior de fazer renascer a esperança numa Justiça sem donos

Depois de um procurador do Departamento Central de Investigação e Ação Penal  ter sido preso preventivamente, acusado e pronunciado pela prática, entre outros, de crime de corrupção passiva, dois juízes desembargadores  do Tribunal da Relação de Lisboa foram agora constituídos arguidos sob suspeita de também terem cometido crimes de idêntica índole.

No chamado caso Fizz, Orlando Figueira, ex-magistrado do Ministério Público, responde em tribunal por alegadamente ter recebido contrapartidas para promover o arquivamento de inquéritos envolvendo personalidades da elite angolana.

O facto de um dos visados ser o ex-vice-Presidente angolano e de a Justiça portuguesa recusar-se a reconhecer-lhe estatuto de imunidade, bem como em insistir em sujeitá-lo ao julgamento por tribunal português de primeira (ou de segunda) instância quando os acordos celebrados pelos dois Estados, nomeadamente no âmbito da CPLP, aconselhariam à remessa do processo para Angola e sua apreciação pelo Supremo Tribunal em Luanda (em cumprimento do estatuído na Constituição e na Lei angolanas) gerou uma forte tensão nas relações institucionais entre os dois países.

Querela esta que tem secundarizado mediaticamente a controvérsia sobre o que factualmente está em causa e, principalmente, a teia de relações que envolve, neste caso como noutros, os agentes da Justiça – em Portugal e em Angola.

O esclarecimento dos papéis neste (e noutros) processo(s) do até há uns meses procurador geral de Angola, João Maria de Sousa, por um lado, e o do reputado advogado português Daniel Proença de Carvalho, por outro, poderão certamente muito contribuir para que o tribunal possa chegar à verdade material e fazer justiça.

Nem um nem outro são arguidos, mas ambos são testemunhas. E um e outro têm muito mais conhecimento e envolvimento neste, como noutros casos, do que publicamente até agora disseram ou puderam dizer – porque tanto um como outro estão obrigados ao sigilo profissional.

Daniel Proença de Carvalho é um advogado brilhante, de inteligência rara e de trato e simpatia contrastante com a mefistofélica fisionomia facial.

Mas não é à toa que, caídos em desgraça os seus amigos e constituintes José Sócrates e Ricardo Salgado, muitos passaram a apelidá-lo de ‘novo DDT’ – justificando-o, desde logo, pelo seu já longo (desde os anos 70 e do célebre ‘caso da herança Sommer’) e impressionante currículo na política, na advocacia, nos negócios e na sua interminável lista de clientes, públicos e privados, diretos e indiretos, e a igualmente extraordinária participação e representação em órgãos sociais de uma lista sem fim de empresas e instituições nacionais e multinacionais.

No caso Lex, ainda que os meandros do futebol atraiam todos os holofotes e atenções, o que está em causa é um esquema idêntico de fuga à Justiça, desta feita em segunda instância, envolvendo um ex-casal de juízes desembargadores, Rui Rangel e sua ex-mulher, Fátima Galante.

A Relação de Lisboa é a instância de recurso das decisões tomadas pelo DCIAP e validadas pelos juízes de instrução criminal.

De uma forma direta e simplista, se estes dois casos confirmarem o pior que se vai percebendo dos elementos conhecidos dos respetivos autos,  teremos de concluir que as teias da corrupção se emaranharam nas da lei e da Justiça, aproveitando-se os mais poderosos das vulnerabilidades maiores dos mais fracos.

É por isso que, ao contrário do que muito se tem dito, os casos Fizz e Lex não são casos que envergonhem a Justiça. 

Antes pelo contrário.

O abate das árvores podres permite a regeneração da floresta.

Os casos Fizz e Lex, a culminarem com a condenação dos que não estão inocentes, provarão que, não sendo os agentes da Justiça incorruptíveis e imunes ao tráfico de influências e de favores, afinal não há impunidade. Nem para esses elos mais fracos da Justiça, nem para quem se aproveitou das suas fraquezas para se fazer ainda mais forte.

A Justiça, por princípio, tem de ser igual para todos. Dura lex, sed lex. 

Não tem donos. 

Até por isso, Joana Marques Vidal não  deve ver renovado o seu mandato como procuradora geral da República. 

Já cumpriu!