‘Não troco a Câmara de Ovar por um lugar de deputado’

Malheiro passou do sucesso autárquico para o sucesso na política interna do PSD. Depois da vitória de Rio, chocou em algumas polémicas, mas tem o apoio do líder eleito.

Toda a gente o conhece e o trata por ‘Salvador’. Na rua, o presidente da Câmara demora 20 minutos a percorrer dez metros. A popularidade é evidente e foi reeleito com um aumento substancial de votos. Escolheu a política para a fazer na sua terra e rejeita a possibilidade de trocar a Câmara «por um lugar de deputado». Mas a incursão na política nacional correu-lhe bem: como diretor de campanha de Rio, viu o seu candidato chegar à liderança do PSD. Em terra de desporto, foram campos de futebol já construídos no mandato anterior que vieram tentar morder-lhe o sucesso. Não desanima e esclarece. Há um velho ditado sobre Ovar, de que é uma terra «má mãe mas boa madrasta». Para este filho pródigo, tem sido boa casa. Também será assim com o PSD? 

Saíram várias notícias sobre si nas últimas semanas – a maioria pouco positivas. Como reagiu?

Desde o momento em que Rui Rio ganhou as eleições, eu não passei a ser uma pessoa mais inteligente ou mais influente: sou a mesma pessoa. Sou alguém que se empenhou de alma e coração nesta candidatura. Por isso, digo-lhe que foi com surpresa, pela negativa. Em três semanas escreveram mais notícias do que em todo o meu restante mandato enquanto presidente da Câmara de Ovar. Isso deixou-me triste. Mas quem me conhece sabe que este tipo de situações comigo funcionam ao contrário: dão-me força adicional. Eu estou na política com a missão de dignificar a classe política. Hoje, cada vez mais percebo o porquê de muitos dos melhores não acederem ao chamamento da casa pública. Também tem a ver com isto.

 

É um sacrifício? Foi isso que sentiu nestas três semanas?

Estas três semanas foram complicadas para a minha família, para os meus amigos, para as pessoas que sempre olharam para mim de uma forma muito positiva. E eu continuo a ser essa pessoa. Não passei a ser um bandido a partir do momento em que Rui Rio ganhou as eleições [risos]. Se eu não tivesse sido diretor de campanha do dr. Rui Rio e se o dr. Rui Rio não tivesse ganho, estas notícias nunca teriam saído. Quero deixar claro: tenho força – muita força – e estou tranquilo. Quem está com a verdade só pode estar tranquilo. 

Rui Rio apoiou-o depois de as notícias saírem?

Naturalmente que sim, temos conversado.

O que pensa da possibilidade de as notícias terem origem dentro do PSD?

Eu não quero acreditar que seja verdade, ainda que haja indícios que poderiam levar a essa conclusão. Desde logo a disputa interna que existiu e também algumas disputas internas mais antigas. Talvez haja feridas por sarar.

Tenho uma pergunta sobre a antiga disputa distrital. O Salvador Malheiro ganhou a distrital a uma fação próxima do Luís Montenegro. Há dias disse a este jornal que a vitória de Rui Rio era uma vitória do partido, do país, mas também uma derrota daqueles que tinham apostado «numa leva a dois anos». Era a Montenegro que se estava a referir? 

Não, estava a referir-me a todos os que logo no dia a seguir à vitória de Rui Rio disseram que seria uma liderança de transição. Até à tomada de posse e até a moção estratégica começar a ser concretizada, o mínimo de dignidade institucional é dar-lhe tempo para executar o mandato que os militantes do partido lhe conferiram, e não fazer avaliações prévias em busca de protagonismo mediático… Críticas construtivas são sempre salutares, mas até agora podem criticar o quê? O facto de ele ter ganho? 

Também é assim que vê o rebuliço parlamentar, com o líder de bancada que apoiou Santana Lopes (Hugo Soares) a não colocar o lugar à disposição? Para si, há pessoas no PSD que ainda não interiorizaram o resultado das diretas? 

Estamos a viver um tempo de transição e é preciso saber lidar com ele. Há uma comissão política nacional em funções, há um presidente do partido em funções, que é o Pedro Passos Coelho, e há um grupo parlamentar que surgiu de uma simbiose perfeita com o líder do partido que está cessante. Eu estou certo que após o congresso, que será um congresso de unidade, tudo se vai colocar nos moldes devidos, ou seja, ter um grupo parlamentar a defender o partido e o seu líder. Eu sei que, e toda a gente sabe, que o líder eleito do partido já conversou com o líder parlamentar e, portanto, tenho a certeza que após o congresso tudo se irá clarificar. Naturalmente que se estivesse no lugar do líder parlamentar, teria colocado o lugar à disposição de imediato, o que não invalidaria que exercesse o cargo até ao congresso… Mas teria deixado isso claro, ganhasse quem ganhasse. Seria o mais correto e mais tranquilo, não se teria criado um caso em torno dessa matéria e dar-se-ia liberdade ao líder de partido para encetar os devidos contactos. 

 

Quando diz que será um congresso de unidade está a dizer que as escolhas de Rui Rio também não serão escolhas, digamos, de fação?

Absolutamente. Depois de umas eleições diretas em que a vontade dos militantes seja respeitada, deve haver união em torno do líder que foi eleito. Se olhar para o que Rui Rio já disse acerca disso ou ouvir quem o conhece bem, entenderá que ele terá essa preocupação de fazer pontes. Quem esteve com Santana Lopes de forma abnegada e convicta e que queira continuar a trabalhar em prol do PSD, terá todo o espaço para isso. Ele já o disse. Creio que haverá mais sinais a demonstrá-lo. Quem não estiver alinhado com esse diapasão – de criar uma alternativa a este governo – não estará a prestar o melhor serviço ao seu partido. 

 

Em opinião estritamente pessoal, como vê o nome de Fernando Negrão para a liderança parlamentar?

A minha opinião estritamente pessoal é que cabe ao líder pronunciar-se sobre essa matéria. 

 

Quando concorreu à Câmara em 2013, o programa eleitoral do PSD continha parcerias desportivas de desenvolvimento com os clubes do concelho. E Pedro Coelho, proprietário de uma empresa que vende relvados sintéticos, era membro do PSD de Ovar. Se já sabiam que os clubes pretendiam relvados sintéticos e se já sabiam que Pedro Coelho era proprietário de uma fornecedora de relvados sintéticos, já sabiam que ele poderia acabar por fornecer esses clubes? 

Não, evidentemente que não. Nós elencámos 113 medidas num programa que foi feito com a equipa da candidatura (Coelho não era, à data, vereador) e não com a concelhia do PSD de Ovar. Todas medidas as elencadas resultaram de auscultação da comunidade. E a maior prova que assim foi é que o município de Ovar tinha um grande défice em infraestruturas desportivas quando comparado com os concelhos vizinhos. Isso fez com que até o PS colocasse no seu programa a mesma proposta. O que quero dizer com isto é que a medida não surgiu no nosso programa por qualquer tipo de pressão desse membro da concelhia (Pedro Coelho); surgiu porque a comunidade necessitava dela. 

 

Certo. Mas num comunicado que fez recentemente salientou que Pedro Coelho (CEO da empresa Safina) é ‘o único’ fornecedor português de relvados sintéticos. Se ele era ‘o único’ fornecedor e se o programa previa a compra de relvados sintéticos, como é que não sabiam que seria ele a fornecê-los?

Não é por aí. Essa leitura sugere que foi tudo premeditado e digo-lhe que não foi. De maneira nenhuma. Nós iríamos sempre reformar os campos dos clubes. Qualquer partido que ganhasse a Câmara o iria fazer.

 

Mas trabalhando e conhecendo alguém que beneficiaria dessas medidas, não teria, hoje, lançado antes um concurso público?

Voltando atrás, teria feito tudo exatamente do mesmo modo. Um concurso público não era a figura legal adequada. Nós temos um departamento jurídico reconhecido fora do nosso município como um dos mais competentes e conservadores departamentos jurídicos do panorama autárquico. Repare: é um departamento jurídico que mantive na íntegra da governação socialista. Não tirei ninguém, não coloquei ninguém. Nem sequer a minha chefe de gabinete é diferente da do presidente de Câmara anterior [risos]. Eu senti, depois de ganhar as eleições, que precisava de quem conhecesse o funcionamento da casa. Ou mexia em tudo e esperava meio ano até olear a máquina; ou bebia da competência de quem já estava. Não é por terem trabalhado com um presidente de Câmara do PS que são menos competentes. Isto para lhe dizer que até a chefe do departamento jurídico é a mesma pessoa e das primeiras coisas que lhe pedimos foi uma proposta de solução técnica para a modernização das infraestruturas desportivas. Pedimos, inclusivamente, um parecer jurídico da Coordenação da Região Centro sobre a mesma proposta, que validou sem reservas os contratos de desenvolvimento desportivo entre o município e os clubes. Depois disto tudo, por que não o voltaríamos a fazer? 

 

Portanto, para rematar, defende que nem a Câmara de Ovar deve ser prejudicada pelo facto de Pedro Coelho ser proprietário de uma empresa, nem essa empresa deve ser prejudicada por Pedro Coelho ser dirigente do PSD?

Isso também. É um orgulho que uma empresa como a Safina esteja sediada no município de Ovar. Tem um trajeto extraordinário. Quando mais de uma dezena de empresas do setor têxtil tiveram de fechar, eles tiveram a ousadia de redirecionar o seu projeto: das alcatifas para os relvados sintéticos. Neste momento, são produtor único. 

 

Agora que Pedro Coelho é vereador da Câmara, continuando CEO da empresa, esses clubes poderão continuar a trabalhar com a Safina?

Os clubes trabalham com as empresas que entenderem.

 

Ou seja: a Safina voltará a ser contratada pelos clubes que receberam dinheiro da Câmara? 

Se tiver de ser, será. A Câmara, em si, terá muita dificuldade em contratualizar com a Safina por uma questão de ética e transparência. 

 

Mas os clubes que receberam dinheiro da Câmara poderão continuar a trabalhar com a Safina. 

Naturalmente. Não vejo qualquer problema aí. Um clube desportivo sediado no município de Ovar que tem de fazer manutenção da sua relva sintética, se me perguntarem se prefiro que compre na China ou aqui em Ovar, eu prefiro que compre aqui em Ovar. 

 

Mas isso não faz com que Pedro Coelho beneficie financeiramente, como CEO, do exercício de um cargo político, como vereador?

Não. Bem pelo contrário. Veja o município de Santa Maria da Feira, aqui ao lado: modernizaram 17 campos e 16 foram feitos pela Safina. É uma empresa que ganhou campos em Loures, que é do Partido Comunista; em Arouca, que é do Partido Socialista; e em Vale de Câmara, que é do CDS. Trabalham em todo o lado. Porque não haveriam de trabalhar em Ovar? 

A Câmara já deu alguma informação no inquérito aberto pelo Ministério Público?

A Câmara não recebeu absolutamente nenhuma comunicação por parte do Ministério Público. O que recebemos foi uma solicitação por parte da IGF, em que o assunto é a tal denúncia anónima, pedindo os contratos com a Safina e os clubes desportivos. Iremos esclarecer tudo cabalmente e documentalmente. 

Foi associado recentemente à existência de ‘militantes fantasma’. Há um processo no conselho de jurisdição do PSD, sobre a eleição da distrital de Aveiro em 2016, com vários militantes que assinaram a ficha com o mesmo número de telemóvel. Como explica isto?

A questão dos militantes fantasma é que não são fantasmas nenhuns. Existem. São pessoas de carne e osso. No exemplo das eleições diretas, as mesas de voto tiveram uma fiscalização ao mais alto nível por parte de ambas as candidaturas, que pediam inclusivamente os cartões de cidadão aos militantes. Segunda nota, sobre os militantes com a morada numa casa que «não existe»: a casa já não está lá porque nós fizemos um realojamento de 30 famílias da zona piscatória de Esmoriz para um conjunto habitacional novo, que era algo que essas famílias esperavam há demasiado tempo. A casa já não existe porque, depois do realojamento, foi demolida. É preciso conhecer a realidade do bairro piscatório. Eu cresci com aquelas pessoas. São situações em que muita gente mora no mesmo número de porta e algumas com barracões dentro da mesma morada. Há ainda, infelizmente, pobreza. Sobre os números de telefone, sabe porque é o mesmo número? Porque são pessoas que não têm um telemóvel seu. E para assinar a ficha de militante do PSD é obrigatório dar um número de telefone. Isso não significa que a vontade de adesão seja menos legítima. 

 

Já pagou alguma quota que não a sua?

Paguei, às quatro pessoas que vivem em minha casa [risos].

 

O seu nome foi muito falado para secretário-geral por ter estado mais no terreno ao lado de Rui Rio. É uma ambição sua?

Para deixar claro: eu dei um apoio por convicção. Não estou à espera de lugar nenhum. Não foi por isso que estive com ele. E se há algo que ficou claro dos nossos diálogos desde o início foi que eu jamais deixaria a minha Câmara. Logo, não poderei ter uma função que requer presença constante na sede nacional do partido [como a secretaria-geral]. Estou, estive e estarei com Rui Rio independentemente de qualquer lugar.

 

Foi o primeiro apoiante público de Rui Rio. O que viu nele?

Foi uma convicção. E explico-a de bom grado. Mas antes quero também dizer que defendi muito Passos Coelho. Foi um líder que me surpreendeu pela positiva. 

 

Então, porquê Rio?

Houve alturas em que quem se preocupa em ouvir as pessoas percebeu que as coisas não estavam bem. Talvez não tenha passado a mensagem verdadeira ao nosso líder de então. A partir de uma certa altura, todos nós percebemos que a mensagem de Passos Coelho não passava para as pessoas. Sabendo que ele estava com a melhor das intenções, que tinha a verdade do seu lado e que foi alvo de uma enorme injustiça, a mensagem já não passava. E aqueles que, preocupados com o partido, e com o país, entenderam ser altura de procurar uma alternativa. Rio surge aí como candidato que poderia dar uma nova esperança, porque víamos isso no povo. Ouvi muitas vezes «o Rio é que era o homem para aquilo». Tem o percurso exemplar, a vontade reformista, a visão a longo prazo. 

 

Durante muitos anos foi isso que ouvimos sobre Passos Coelho: a narrativa da credibilidade, as reformas, o crescimento económico.

Sem dúvida. Mas era preciso coragem para fazer o diagnóstico correto. Todos sabíamos que se Passos Coelho fosse a eleições teria muitas dificuldades. Rio terá muito menos dificuldades. Terá um resultado naturalmente melhor do que teria Passos. 

 

E do que teria Santana Lopes?

Esse ainda mais [risos]. 

 

Rio disse que não faria ao PS o que o PS fez a Passos Coelho, ou seja, que não impede António Costa de governar se este ficar em primeiro. Assunção Cristas diz, pelo contrário, que o que conta é quem tem mais deputados no parlamento. Estas visões distintas do cenário pós-eleitoral são conflituosas?

A afirmação de Rui Rio que refere tem o meu total apoio. É uma afirmação dele, mas na qual eu me revejo totalmente. A prioridade é afastar o Bloco de Esquerda e o PCP da governação. Acho que foi um grande tiro porque mostrou o seu desagrado completo com a atitude de António Costa, de tirar a vitória a quem ganhou, mostrou a vontade de Rui Rio colocar os interesses do país à frente de qualquer interesse político-partidário, e reduziu drasticamente o espaço de manobra ao PS. Obriga o PS a pensar duas vezes, caso o PSD ganhe as eleições novamente sem maioria absoluta – ainda que eu acredite que será com essa maioria. 

 

Acredita que desta vez se sentarão à mesa devido a esta postura de Rui Rio. Isso não é confiar é quem não tem sido de confiança?

Acho que é maior que tudo isso. É ir de encontro a muito do eleitorado de centro, moderado, até de centro-esquerda, que é contra uma governação de aliança com partidos radicais ou de extremos. Rio é aquele que melhor penetra nesses socialistas moderados. Há muitos simpatizantes, do PSD e do PS, que não aceitam esta solução governativa. Dizer que não se viabiliza o governo de quem ficar em primeiro seria promover o voto útil no PS.

E sobre Cristas, que preferiria uma ‘geringonça’ à direita?

Eu não me identifico minimamente com essa ideia, mesmo que o parceiro natural do PSD seja o CDS. Deve ser primeiro-ministro o líder do partido mais votado. 

 

Falou das suas origens humildes. As causas sociais são uma constante no seu discurso. Não receia ser confundido com a esquerda?

Quando termino o doutoramento em França, em 2002, tenho uma série de oportunidades de não regressar a Portugal e liderar um centro de investigação no Brasil. Mas quis voltar. Pela família e pelas saudades da minha terra. Sou muito ligado às pessoas daqui. Pergunta-me se tenho receio de ser confundido com um homem de esquerda? Não tenho! Eu sou um homem de centro-esquerda! Já desafiei em sede de assembleia municipal alguém dizer um executivo que tenha tido mais sensibilidade social, mais preocupações com a habitação, com o ambiente, a educação ou a saúde. Nenhum teve. E são marcas da esquerda. 

 

Então por que não está num partido de esquerda?

Porque não é isso que eu sou. Sou um social-democrata nórdico. Para mim tanto vale uma economia de mercado como um Estado social forte, focado nas minorias, naqueles que mais precisam.