Passos Coelho ainda não saiu e já voltou. Ou, pelo menos, o seu discurso não saiu consigo. E o veículo desse regresso foi o mais improvável – ou o mais provável entre os improváveis – a fazê-lo. Marcelo Rebelo de Sousa.
Ontem, num evento com o setor bancário português denominado “Banking Summit”, o Presidente da República, que não perde uma (summit), manifestou preocupações sobre o modo como Orçamento do Estado do ano corrente lida com “a iniciativa privada”, criticou a tendência geral para “o conjunturalismo” – isto é: a excessiva dependência das conjunturas contemporâneas –, deixou elogios ao “inquestionável mérito” do governo anterior, de Passos Coelho, e saudou o facto de o atual governo, de António Costa, ancorado “em diligências do passado”, ter mantido o “rigor financeiro” que caracterizou o mandato do seu antecessor, Passos, entretanto de saída da política ativa e da liderança da oposição.
Até as tão infames reformas “estruturais” Marcelo promoveu, além de pedir cautela com eventuais “bolhas no consumo” e garantias que “fenómenos de contestação inorgânica [manifestações sindicais] não desestabilizem o ambiente social”.
O governo de Passos “deixou, com inquestionável mérito, um trilho aberto e começado a percorrer, de drástica redução do défice, sensibilização para a prioridade nacional do saneamento das contas públicas e do crescimento da economia portuguesa”. Sendo que essa “sensibilização” seria novamente aludida, mais perto do fim, num apelo à sua continuação: “Manter o rumo financeiro percorrido e reforçar a sua interiorização pelos portugueses”.
O chefe de Estado argumentou que esse “rigor” continuou sob a alçada do PS, mencionado as “cativações” e algum “sacrifício no investimento” como medidas tomadas pelos socialistas.
Em jeito de retrospectiva historico-política, o Presidente falou na “dúvida existente no primeiro trimestre de 2016”, ou seja, logo após as posições conjuntas entre PS, PCP e Bloco de Esquerda. E esta “era a seguinte: prosseguiria – e em que termos e com que empenho – a nova fórmula governativa [a geringonça] o caminho herdado [do governo PSD/CDS]?”
“Ou, à força de querer nele introduzir uma visão mais atenta à devolução de rendimentos, em instantes preocupações sociais e a um papel importante da procura interna, entraria em choque com as instituições europeias ou se depararia com o inêxito da sua execução?”, recordou Rebelo de Sousa, sem assumir se ele próprio tivera (ou não) a enunciada dúvida.
“Esta não era uma dúvida académica ou hipotética. Dominou espíritos empresariais e políticos – internos e externos – durante meses a fio. E fundou mesmo as reais expectativas críticas das oposições orgânicas [os partidos] e inorgânicas [os sindicatos e a sociedade civil]”, prosseguiu. E como dissipou o executivo de António Costa essa dúvida? Marcelo também a isso respondeu: “Mantendo o essencial das metas do défice e depois ultrapassando-as. Obtendo a aprovação de três dos quatro orçamentos da legislatura. Tentando conjugar compromissos sociais programáticos – ou assumidos com a base de apoio parlamentar [PCP/BE] – com o rigor financeiro. Conquistando um bom ambiente europeu. Ampliando-o para os mercados financeiros. Iniciando paulatinamente a redução da dívida pública”, enumerou, bastante factualmente e até com algumas achegas.
“É certo que num contexto europeu e mundial muito favorável em 2017, tirando proveito do turismo e do Web Summit, ancorados, aliás, em diligências do passado. Recorrendo meticulosamente a cativações, devoluções oportunas do IVA, injeção no consumo privado, sacrifício de investimento e contenção nalgumas despesas de funcionamento da administração pública”. Tudo isso, segundo Marcelo, potenciou um 2017 com “emprego, crescimento, arranque de novo investimento e contributo das exportações” numa situação bem diferente e que – desta vez em achega para Passos – “muitos consideraram infalivelmente condenada ao fracasso”.
O Orçamento do Estado do ano corrente, por sua vez, mereceu reparo no que à iniciativa privada diz respeito. Marcelo quer “ir mais longe nos incentivos” aos privados e vê essa iniciativa “muito timidamente tratada” no OE de 2018. É preciso “atender às áreas públicas cuja disfunção pode atrasar ou questionar o processo em curso [a consolidação]” e, ao mesmo tempo, “não dar sinais – mesmo que pontuais, errados ou perturbadores – a um processo com evidente juízo favorável externo” – podendo ser o “externo” tanto Bruxelas como os mercados financeiros.
Na conclusão, a repetição de uma exigência – “estabilidade política, legislaturas cumpridas, governos fortes com oposições fortes, entendimentos nas questões de regime mas alternativas marcadas na governação” – e o surgimento de uma nova: “Respeitabilidade e confiança nas instituições incumbidas das missões de soberania”.
O Ministério Público, por exemplo, é uma delas. A plateia, contudo, era a banca.