Um século depois, é difícil que o arrepio se erga com o pó das páginas dos livros de História, e nos dê uma ideia do tremor que tomou conta dos espíritos no dia em que a Alemanha declarou guerra a Portugal. Foi em março de 1916, e o conflito viria a ser o primeiro a traduzir o seu horror em números que não deixavam margem à indiferença. Cerca de 10 milhões de soldados perderam a vida na I Guerra Mundial, e para lá dos que definharam lentamente, passando meses nas trincheiras, como se lavrassem a terra com os seus corpos, morreram ainda sete milhões de civis.
Em janeiro de 1917, as primeiras tropas portuguesas partiam para a frente, na Flandres francesa, e face aos relatos daquilo com que se depararam, no verão ficou decidido que o então Presidente da República, Bernardino Machado, faria aquela que viria a ser a primeira viagem oficial ao estrangeiro do Chefe de Estado português, tendo como principal objetivo encontrar-se com os homens mobilizados para a guerra, expressando-lhes “a solidariedade de Portugal inteiro”.
Foi para assinalar os 100 anos desta viagem que o Museu da Presidência da República inaugurou no passado mês de novembro uma exposição dividida em três partes: a primeira centrando-se na figura de Bernardino Machado e o seu percurso multifacetado, fosse na política, fosse como pedagogo e também homem de família (vale a pena recordar que teve 19 filhos, e de uma só mulher: Elzira Dantas Machado); a segunda passa por uma evocação da viagem que, tendo durado 18 dias, e, maioritariamente feita de comboio, foi pontuada por encontros com os chefes de Estado estrangeiros, que o encheram de condecorações, num momento de reconhecida importância em termos de reconhecimento internacional, mas também pelas visitas a hospitais e a passagem pelas zonas devastadas, onde o presidente testemunhou os sacrifícios dos soldados portugueses. Finalmente, temos um retrato do que foi aquele martírio, desde os registos do quotidiano na frente de combate feitos in loco pelo pintor Sousa Lopes, aos aspetos aparentemente mais comezinhos, que acabam por nos dar os traços mais fundos da tortura a que estavam sujeitos os milhares de portugueses com fardas e calçado inadequados ao clima inóspito que encontraram, e aos testemunhos dessa descida ao inferno, seja em poemas, seja em peças de teatro e outras formas de exorcismo. Também a fé e a esperança ali terão passado por dificuldades.
Contando com 550 peças provenientes de várias coleções públicas e privadas, a exposição que volta a assumir relevo com um ciclo de conversas a propósito da exposição, nos 3 e 17 de fevereiro, e 3 de março, no Palácio da Cidadela de Cascais, foi precedida por uma demorada investigação que apurou novos aspetos e testemunhos do que foi aquela histórica viagem. Esta investigação partiu do diário escrito por Ângelo Vaz, o secretário particular de Bernardino Machado – livro que se encontrava esgotado e foi reeditado no âmbito desta iniciativa -, e nele nos dá conta de como, mesmo se a esperança rastejava naquela “atmosfera impregnada de trágica devastação”, assim que podiam gozar de uma folga do inferno, os portugueses enchiam-se de dignidade: “De onde em onde, veem-se soldados portugueses de mistura afetuosa com francesas. E a conversação dos Serranos com as gentis raparigas corre ininterrupta e animada, como se os nossos magalas fossem conhecedores perfeitos da língua francesa!”