A guerra síria nunca se deu por terminada e mesmo o apaziguamento do último ano correu em terreno movediço. A relativa paz conseguiu-se à custa de um regime aparentemente desinteressado em reaver, pelo menos para já, os territórios rurais do noroeste do país, para onde os grupos retalhados de rebeldes, misturando organizações islamistas, jihadistas e alguns grupos moderados, fugiram depois da fatal queda de Alepo, no final de 2016. Nunca se colocou a hipótese de Bashar al-Assad ter desistido destes territórios, que cobrem a maior porção de uma das grandes províncias do país, Idlib. No entanto, e com o decorrer dos meses mais ou menos pacíficos, instalou-se a ideia de que o ditador sírio já estaria contente com a sua mão e não precisaria novamente de ir a jogo para sair por cima numas negociações de cessar-fogo. Empresas russas e iranianas pressentiram que o fim da guerra estaria próximo e lançaram-se aos milionários contratos de reconstrução do país que vão sendo desenhados em Damasco. O terreno, no entanto, moveu-se.
No início do ano, a guerra civil síria entrou num dos seus períodos mais violentos, comparável aos piores momentos do conflito, que em março completará sete anos. O regime de Bashar al-Assad, afinal de contas, não estava satisfeito com a sua mão e decidiu melhorá-la, fazendo avançar tropas sírias e as milícias xiitas do Hezbollah para os territórios rurais de Idlib, que por estes dias estão debaixo de fogo dos ares e de terra. O enclave rebelde em Ghuta Oriental, um conjunto de bairros densamente povoados nos arredores de Damasco, há anos sob cercos totais ou parciais, sofrem também os piores bombardeamentos desde que começou a guerra. Só em dois dias do início desta semana, morreram cem pessoas nesta zona da capital, que, segundo as Nações Unidas e a Cruz Vermelha Internacional, atravessa um período de particular escassez de água potável, material médico e alimento. Nele vivem 400 mil pessoas, em edifícios indistinguíveis dos que são usados pelos grupos armados locais, fortemente entrincheirados, bombardeados em conjunto com casas residenciais. Metade são crianças, diz a ONU, e 12% das que têm menos de cinco anos sofrem de malnutrição.
A grande violência na guerra síria é explicada pelos conflitos cruzados que se travam no terreno. E um deles explodiu há cerca de duas semanas, também no norte do país, onde os grupos armados curdos controlam uma cintura de territórios que abraça a fronteira sul da Turquia. O Presidente Recep Tayyip Erdogan ordenou a entrada em força do seu exército nos territórios curdos, que, segundo a sua interpretação, não passam de satélites regionais das organizações separatistas que operam em território turco. A invasão turca, embora limitada, é violenta e pode até envolver indiretamente as forças especiais dos Estados Unidos que combatem ao lado de alguns destes grupos curdos. Desde o início da operação, a 20 de janeiro, Ancara afirma que matou mais de mil militantes da YPG, a milícia curdas que nos últimos anos conquistou uma grande porção do território do Estado Islâmico a sul da fronteira da Turquia. Os números são disputados. O que é indisputável é que o Exército norte-americano já avisou o Governo turco de que não pode atravessar o rio que separa Afrin de Manbij, como Erdogan diz que quer fazer. «Nós vamos defender-nos», afirmava um comandante norte-americano esta semana ao New York Times. Dias depois das suas declarações, o exército dos EUA atacou em força um grupo avançado de 500 homens ligados ao regime de Assad que pretendia conquistar território aos grupos curdos. Nessa operação, morreram à volta de cem homens armados ao serviço de Assad, segundo o Pentágono.
As ramificações da guerra são imprevisíveis, mas, no conflito sírio, são também a norma e a razão pela qual a guerra provavelmente se prolongará por mais e sangrentos anos. Em Idlib, no noroeste, o regime prepara-se para conquistar as cidades mais importantes sob ocupação rebelde e abrir um novo capítulo de domínio. Mas não há garantias de que esse capítulo seja menos violento que o atual. O Estado Islâmico, por exemplo, praticamente desapareceu do mapa. Mas muitos dos seus combatentes também parecem ter desaparecido e estão hoje provavelmente inseridos em células subterrâneas que atacarão com táticas de guerrilha, como nos piores anos da invasão americana do Iraque. Os rebeldes de Idlib, argumenta Haid Haid, um analista da Chatham House, vão fazer o mesmo. Aliás: já o fazem, com bombas plantadas à beira da estrada em cidades como Alepo e Damasco. E não são grupos resilientes com um punhado de apoiantes. «Falamos de milhares de pessoas, não de centenas», explica Haid ao New York Times.