A guerra síria entrará em breve no seu oitavo ano. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas morreram desde que começou, no mês de março de 2011, na primeira das suas várias encarnações, a de uma revolta primaveril árabe reprimida violentamente pelo regime que tentava derrubar. As Nações Unidas deixaram há anos de contar, mas fala-se habitualmente em 500 mil mortos. Não falta quem diga que o número é modesto. Da população de 23 milhões de pessoas do pré-guerra, metade está deslocada. Quase metade dessa metade, à volta de 5,5 milhões de pessoas, fugiu do país. A maioria está na Turquia, onde leva uma vida difícil, na maioria muito pobre, sem a proteção do Estado e em muitos casos sem direito a escola e autorização de trabalho.
Convencidos de que a guerra está no fim, agora que Bashar al-Assad controla todas as cidades importantes, o Estado Islâmico está praticamente desaparecido e aos rebeldes restam-lhes apenas os terrenos baldios da Idlib rural, mais de meio milhão de pessoas regressaram no ano passado, segundo a ONU. Nos últimos dois meses, porém, muitas famílias sírias começaram a viagem inversa. A guerra, apercebem-se – tal como lentamente o mundo – não está terminada. Assumiu apenas uma nova encarnação, talvez até mais violenta que as anteriores.
A guerra síria é hoje um sanguinário tabuleiro de xadrez no qual vários jogadores travam ainda mais guerras. Há anos que este é o pano de fundo do conflito sírio, onde entraram, à vez e com muitos recuos, as principais potências regionais árabes, financiando os rebeldes e procurando a derrota de Assad; o Hezzbollah e o Irão, defendendo-o e, eventualmente, salvando-o; os grupos separatistas curdos; os Estados Unidos, procurando simultaneamente – e hesitantemente – a queda de Assad e o fim do Estado Islâmico; a Rússia, dando a mão que restava para salvar o regime e derrotar os islamitas; e, mais recentemente, o exército turco e a aviação israelita. Estas figuras atuam há anos com interesses mais ou menos concorrentes, com maior ou menor atrito, distantes ou próximos das dezenas de linhas da frente na guerra.
Nos últimos meses, contudo, a convivência difícil vem-se transformando em confronto. Isto não invalida a ideia de que Assad tem a guerra nas mãos e a sobrevivência assegurada. É, aliás, por isso mesmo que as verdadeiras guerras à distância dão sinais de vida. Todos querem influenciar o statu quo do pós-guerra e capitalizar no investimento dos últimos anos. Os pontos de confronto são numerosos. E as consequências, explica, ao Washington Post, Sami Nadir, investigador no Instituto de Assuntos Estratégicos do Levante, podem ser trágicas. Talvez até globais. «Há uma nova Guerra Fria na Síria e qualquer escalada pode levar a uma guerra regional ou internacional, tendo em conta que as grandes potências estão agora no terreno e não jogam já através de satélites, como acontecia antes.»
Aliados e inimigos
Tomemos por exemplo apenas o centro e norte do país, esquecendo por momentos a tensão incendiária na fronteira com Israel. Os Estados Unidos entraram na guerra em 2014, desde os ares para apoiar as milícias curdas sírias na sua guerra ao Estado Islâmico, que por aqueles dias ameaçava a cidade de Kobani, na fronteira da indiferente Turquia, provocando dezenas de milhares de mortos. Ancara fechou os portões ao longo de várias semanas, impedindo a sua população curda de partir para a guerra, por temer o que acabou por se verificar: os curdos afastaram o Estado Islâmico com ajuda das bombas norte-americanas e hoje controlam cerca de 20% do território sírio, sob a forma de uma grande tira de terreno no norte e vastas áreas no nordeste.
Washington, concentrada sobretudo no fim do Estado Islâmico, tem hoje dois mil tropas das forças especiais neste território, combatendo em conjunto com um misto de árabes, cristãos e, sobretudo, curdos, que o regime sírio tolera com desagrado e que Ancara, o aliado americano da NATO, quer esmagar. Há dois meses, a Turquia entrou em força contra os territórios curdos do norte, numa invasão militar convencional com a qual quer «eliminar terroristas», uma vez que considera os curdos no combate ao Estado Islâmico um braço armado dos seus próprios separatistas curdos do PKK, contra os quais combate há mais de 25 anos. Os Estados Unidos prometem não abandonar os aliados, já desenharam uma linha na areia para evitar novos avanços turcos e Ancara, por sua vez, insiste em dizer que levará a operação até ao fim. «Temos muito orgulho das nossas posições e asseguramo-nos de que toda a gente as conhece», dizia há dias o major norte-americano Jamie Jarrard ao New York Times, que investigava as hipóteses de um confronto entre os dois aliados da NATO.
Estes não são apenas confrontos de eventualidade. As poucas semanas de ofensiva turca provocaram já para lá de uma centena de mortos – mais de mil curdos morreram, a acreditar na duvidosa matemática turca. Umas centenas de quilómetros a leste, nos arredores da cidade de Deirezzor, onde por mais de dois anos um destacamento de soldados sírios esteve cercado por tropas do chamado Estado Islâmico, uma grande milícia alinhada com o regime de Assad atacou há uma semana posições turcas protegidas pelos norte-americanos. A ofensiva do regime pôs em ação mais ou menos 500 homens, em parte para testarem a solidez da aliança entre Estados Unidos e forças armadas curdas. Erraram no cálculo e embateram de frente com uma enorme mobilização de meios aéreos americanos, que atacaram dos ares com drones Reaper MQ-9, helicópteros Apache, aviões AC-130, bombardeiros B-52 e caças F-15. Em três horas, as forças atacantes sofreram uma derrota estrondosa. Os primeiros números do regime sugeriam mais de cem mortos entre os seus militares. No final desta semana, porém, começaram a despontar relatos de que dezenas de mercenários e elementos das forças especiais russas poderiam estar entre os mortos. Na quinta-feira, a Reuters avançava, com base em numerosas fontes, que três centenas de cidadãos russos foram mortos ou feridos nos combates de Deirezzor e que nos últimos dias foram silenciosamente retirados do país e levados para quatro hospitais militares russos. Numa noite síria podem ter morrido mais militares de Moscovo do que em todo o conflito ucraniano.
O fim do jogo
Existem várias razões para as guerras paralelas sírias despontarem neste momento. Assad, é verdade, garantiu a sobrevivência e a vitória assim que reconquistou a vital cidade de Alepo aos rebeldes retalhados e desfigurados pela chegada de organizações extremistas mais bem organizadas, armadas e financiadas. Mas o ditador sírio não venceu a guerra sozinho. O Irão investiu milhares de milhões de euros em ajuda financeira, armamento e homens para manter Assad à tona. Damasco estaria numa posição muito diferente hoje não fosse pelo Hezzbollah, pelas milícias xiitas iraquianas e pelos guardas da revolução, todos garantindo a Teerão uma área de influência que se estende, quase ininterrupta, de Bagdade a Beirute. Algo de semelhante pode dizer-se da aviação de Moscovo e das centenas de homens que o governo russo tenta ocultar no solo. Esses garantem uma presença russa no Médio Oriente, a reentrada de Vladimir Putin no palco global e uma importante base militar no Mediterrâneo.
O conflito aproxima-se de um tipo de fim. Não há quase esperança para os rebeldes em Idlib, que por estes dias sangram território e quase não têm contacto com os moribundos políticos da oposição no exílio, largamente ignorados desde que a diplomacia abandonou Genebra e partiu para Sochi, onde o Presidente russo a comanda, ainda que com pouco êxito. À medida que milhares de rebeldes tentam passar à clandestinidade, na esperança de travarem uma guerra de guerrilha em lume brando, como a que os EUA enfrentaram no Iraque, chegou o momento de as grandes potências capitalizarem o investimento ou impedir que outros o façam. Israel entra neste último grupo. Se a Turquia teme a afirmação curda, Israel teme o poder iraniano. Não está a sós na região, mas está mais perto que os outros. Esta semana, tentando retaliar contra a entrada de um drone de Teerão no seu espaço aéreo, um caça F-16 de Telavive foi abatido. É a primeira vez que isso acontece desde 1982, mas é provável que se repita num futuro próximo. «Estamos a assistir a uma renegociação das regras do jogo no que diz respeito à atividade militar que cada lado tolera do outro», diz Ofer Zalzberg, analista no Grupo de Crise Internacional. «Vamos ver mais e mais fricção entre estas figuras.»