Era pegado a dicionários. Houve uma época em que chegou até a aspirar morrer rodeado deles. Nenhum, nem mesmo o “Dictionnaire des Injures”, o terá entusiasmado tanto como o dicionário pequeno-burguês do nacional lugar-comum, que converteu em instrumento de trabalho poético, tão inesgotável quanto eficaz, e manuseou com desenvoltura nunca vista.
É provável que não trocasse uma tarde agarrado a um bom dicionário por uma festa de homenagem. A menos que a festa decorresse na própria página e, por efeitos de uma experimental fúria escarninha, tudo se orientasse para esfrangalhar o tributo, desmontado, desarticulado, como acontece no poema “homen agem”. De resto, as palavras que a ideia de homenagem põe a rodar representariam um bom arranque para um dicionário de termos dos quais a prática poética de Alexandre O’Neill sempre se manteve ironicamente afastada: aparato, compostura, consagração, convenção, deferência, encómio, enfatuamento, “enxúndia retórica”, “grande obra”, “respeitinho”, solenidade e por aí fora alfabeticamente.
Chegou a coroar-se de louros – por desfastio. A glória e o pedestal não eram para O’Neill um pouso cobiçável. Preferia manter-se coloquial e sem cerimónia, desdenhoso, a passarinhar ao rés da Patriazinha, onde nunca teve os pés bem assentes. O’Neill não se tinha em alta conta literária por uma soma de motivos, entre os quais o pudor literário, que entretanto terá ido desta para pior. Duvidava dos seus versos, alguns “nem para atacadores”. De modo que considerava que as palmilhas de grande poeta lhe ficavam a nadar. Dizia-se, aliás, “um grande poeta menor”, e tentou passar sempre ao largo do cânone, a que chegou a apertar os calos. O cânone é que não esteve pelos ajustes: apanhou-o numa dessas esquinas onde o improvável e o literato se encontram e vai de instalá-lo na história da literatura, num cómodo todo “ladrilhado de lindos adjectivos”. Depois foi o que se sabe: mais edições, diversos estudos críticos, recensões. “Mal um sujeito se precata e zás! Outro estudo, outra biografia, outra exegese vem por aí abaixo a ver se lhe acerta na cabeça”, atirou a uma crónica. Não tinha levado ainda com a chamada literatura de colóquios, mas a verdade é que há muito andava a pedi-la.
“E a minha festa de homenagem?” A pergunta, untada de autoironia, fê-la ele mesmo. Quase 25 anos eram passados sobre a publicação do seu primeiro livro, “A Ampola Miraculosa” (1949). Estava mais que na hora de celebrar as bodas de prata, se possível com cerimoniais de pompa, reclamou numa ansiedade sarcástica. Três décadas depois da sua morte, ou melhor e com mais rigor, “30 anos + 1 mês” – parte do nome do colóquio-homenagem que lhe foi dedicado em setembro de 2016 –, eis a festa da Universidade Católica Portuguesa organizada por Joana Meirim, de que agora nos chega o maldisfarçado livro de atas. O peso das suas 262 páginas esbate-se um tanto na edição maneirinha da Tinta-da-China, a fazer lembrar um agradável caderninho de apontamentos. O jogo dos ajustes fica por aqui.
Intérpretes, críticos, hermeneutas, exegetas e aparentados, todo esse naipe de explicadores que O’Neill descartava, não quiseram deixar sem resposta o poeta. Sentaram-se à mesa e prepararam-lhe uma sopa de letras onde depressa se recortam lugares muito comuns da sua receção crítica: o lugar do poeta na história da literatura, a ascendência literária, as influências, a crítica social, o rótulo de poeta satírico, o seu modesto projeto poético, etc. Nessa sopa onde não é difícil ver esbracejar, azoratado (ah! os dicionários) e impotente, o caixadòculos, boiam autoridades teóricas, antepassados literários, minudências às tigelas, frases de uma inteligente inutilidade com mais ou menos voltas ao torno, raspas de bazófia institucional – e até um cherne apanhado nas malhas do exercício do “close reading”. Do fino tempero que é a (auto)ironia, apenas uns laivos – ousadias demasiadas que não podem senão desarranjar as certezas académicas: “Este livro de ensaios responde, sem ironia, ao título da crónica ‘E a minha festa de homenagem?’, publicada n’‘A Capital’, em 1973.” Representará esta ausência uma desconfiança nas virtudes da ironia? Uma incapacidade de tomar distâncias, suspender o “estilo doutor” e fazer diferente? Talvez ambas.
Gustavo Rubim, constrangido pelo título e pelo assunto previamente propostos (“A violência dos signos”), reconhece que eles “mais não eram do que uma tentativa de encontrar um tema suficientemente crítico e suficientemente universitário” para justificar o seu ensaio. Como se daqui adviesse um ganho inequívoco. Opta então por um arranque em que declina o papel de crítico, trocado pelo de leitor especular. Alexandra Lopes leva mais longe o exercício de salvaguarda da face do crítico, escudando–se no próprio O’Neill: “Eu não sou crítica, sou leitora. Isto não é uma crítica, é uma nota de leitura.” Da iguaria que pode ser o humor, nem sinal, mesmo porque ele ameaça o sisudo mundo académico, corrói. É notório o embaraço da academia, que curiosamente mantém ainda em branco o capítulo do humor em Camões ou Pessoa, em lidar com o ironista emérito que é O’Neill.
Quem tem memória literária vê, pairando sobre o académico cenário, a imortal Albertina, num despique monótono de zumbidos, que é a marca sonora da literatura de colóquios. Desenvolta, inconveniente, há de ter ido mosquetear o ouvido do poeta: “Eh pá ó O’Neill isto tá composto, isto tá bonito!”
Abrangendo as várias facetas da obra do autor de “Feira Cabisbaixa” – a poesia, a crónica, o teatro, a tradução, a publicidade –, o volume compõe-se de 14 textos, entre os quais um “ofertado” e republicado por Fernando J. B. Martinho, outro adaptado de um capítulo de tese de mestrado, a dar razão a Alexandre O’Neill: “Onde há tese há cadáver.” Com exceção da admirável intervenção de Ramiro S. Osório, a dar-nos a graça de uns poemas que poderiam ser apócrifos do homenageado, e com os quais o volume remata, a restante produção tem formato rigidamente académico. E boa parte foi promovida a ensaio, esse tubo largo por onde tudo passa. Género exigente, o verdadeiro ensaio não se compadece com lugares-comuns, minúcias exegéticas, fraco poder alusivo, cassetes repisadas e zunidos de enfadar leitores (“O’Neill é, sem dúvida, um dos nossos autores contemporâneos que mais reiteradamente abordou, crítica mas também quase sempre ludicamente, os modos de ser português”, p. 79). Não é o caso do interessante ensaio de Miguel Tamen sobre “A Publicidade” (e a poesia) ou do texto “Enquanto os grilos periclitam, o poeta que se desenrasque”, de Nuno Amado. Numa prosa aplicada e duplamente bem–disposta, centra-se nos problemas técnicos que os poemas fazem saltar ao caminho de O’Neill e dos quais sabe desenvencilhar-se com perícia.
Fica a “homenagem possível”, na expressão da organizadora do volume. E fica a faltar a festa da linguagem, a carambola verbal, o tom apaixonado do elogio, o efeito de surpresa, por oposição a um efeito de banalidade mais que indesejável numa festa em que o homenageado é quem é. E também a arte de a academia se rir de si própria e das suas incapacidades, a exemplo de O’Neill. Apetece mexer no epitáfio que o poeta, aos 30 anos, escreveu para si: “Aqui jaz Alexandre O’Neill/ Um homem que dormiu/ muito pouco/ Não merecia isto”.