Com a demora nos concursos para contratação de médicos recém-especialistas hospitalares no centro do debate político, e o ministro da Saúde a responsabilizar as Finanças pelo maior atraso deste dossiê, Jorge Roque da Cunha acredita que, mais tarde ou mais cedo, as 700 vagas vão mesmo abrir para depois o governo dizer que não eram assim tão necessárias porque centenas de médicos optaram por não ficar no SNS. O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), que mantém junto com a FNAM uma ameaça de greve de três dias para março, diz que Adalberto Campos Fernandes está “prisioneiro” de Centeno e muito fragilizado politicamente. E estranha que Marcelo não saia mais em sua defesa.
A Ordem dos Médicos diz que não dá para acreditar no ministro da Saúde. O SIM fala de um ministro de 2.ª classe. Adalberto Campos Fernandes tem condições para continuar a tutelar a Saúde?
O SIM acha que essas decisões têm de ser tomadas pelos políticos. Enquanto o dr. Adalberto tiver a confiança do senhor primeiro-ministro, continua. Enquanto o senhor-ministro tiver a confiança do parlamento, continua. O SIM não faz política partidária.
Esta semana o ministro assumiu publicamente que, no caso da demora dos concursos para a colocação de médicos recém-especialistas nos hospitais, a bola está nas Finanças.
A verdade é que esse passa culpas já vem ocorrendo desde março do ano passado. O governo é uno, aliás o senhor primeiro ministro acabou por afirmá-lo de uma forma inqualificavelmente jocosa no último debate da atualidade no parlamento. O que parece é que existe uma cabala e aí concordo com o ministro da Saúde.
Campos Fernandes diz que há uma tendência para fazer da Saúde um alvo fácil.
Diz que há uma cabala, uma conspiração, uma campanha organizada contra o ministro da Saúde. Essa campanha tem origem no próprio governo. Não se compreende como é que uma secretaria de Estado do Orçamento e um ministro das Finanças destratam um setor desta forma. Há um compromisso do ministro da Saúde que é dar médico de família a todos os portugueses, estamos a falar de cerca de 700 mil que continuam sem médico. Ao mesmo tempo, temos um governo que, por razões burocráticas, impede que centenas de médicos de família comecem a trabalhar.
Mas vê uma conspiração deliberada ou é mais uma incompreensão das dificuldades concretas nos centros de saúde ou nos hospitais?
É uma insensibilidade total e uma cegueira que o senhor ministro das Finanças tem e a sua vaidade em ter sido presidente do Eurogrupo. Nem sequer estamos aqui a falar de questões financeiras porque sabemos que, nos últimos 10 anos, cerca de 2000 assistentes graduados sénior, portanto as pessoas no topo da carreira, saíram do SNS. Cerca de 4000 assistentes graduados saíram por reforma do SNS. Isto além das centenas que não contabilizamos e que saíram para o privado. Neste momento temos uma situação calamitosa no SNS em termos de recursos médicos e não estou a ser alarmista.
Qual é o impacto dessas saídas? Há serviços que vivem de internos?
Temos serviços onde nem sequer internos existem porque não têm idoneidade formativa. Temos serviços como, por exemplo, a ginecologia no Hospital de Setúbal ou Faro onde 90% dos membros têm mais de 50 anos e 80% têm mais de 55 anos e são eles que asseguram as urgências. No dia em que deixarem de o fazer esses serviços fecham. Estamos a falar de situações onde as urgências dos doentes internados são feitas por internos. Estamos a falar de uma decapitação ao nível dos dirigentes dos serviços nos hospitais e centros de saúde. O Ministério da Saúde sabe disto e não é desculpável o ministro dizer que o responsável é o ministro das Finanças. Se assim fosse, a atitude digna que teria de ter – não competindo ao SIM dar conselhos de assessoria ao senhor ministro – era uma atitude mais firme.
Tem experiência política. Vê sinais políticos de que António Costa estará a tirar o tapete ao ministro da Saúde?
Não sou comentador político mas o senhor ministro da Saúde tem tido muito pouco apoio dos partidos que suportam o governo no parlamento. É uma evidência. Tem tido muito pouco apoio do governo. E tem tido muito pouco apoio do primeiro-ministro. A forma como António Costa responde à dra. Catarina Martins ou à dra. Assunção Cristas sobre a questão dos concursos, uma forma jocosa…
Quando diz que os concursos estão por dias mas também podem estar por segundos?
Sim, dizer que qualquer acontecimento futuro pode ser convertido em segundos é uma falta de seriedade.
É habitual nos ciclos políticos falar-se de substituições, remodelações. Ouve-se falar na Saúde de nomes como Manuel Pizarro para o lugar de ministro. Teria um peso político diferente?
Não quero sair do registo do sindicato que tem como obrigação defender as condições de trabalho dos médicos e a defesa de um SNS de grande qualidade para os portugueses. Não nos compete a nós essa mercearia de combate político do PS. A verdade é que o ministro da Saúde dá ideia de estar muito fragilizado em termos políticos.
Conversou com Adalberto Campos Fernandes? São amigos?
Tenho uma relação de amizade com o dr. Adalberto Campos Fernandes que no dia em que ele foi para o Ministério da Saúde ficou congelada. A relação institucional sobrepõe-se à pessoal.
Sendo ele uma pessoa muito experiente e conhecendo o setor, as políticas, imagina o estado de espírito?
É um bom político, tem um excelente discurso. Tem uma grande amizade com o senhor Presidente da República. Aliás, devo dizer: acho que o senhor Presidente da República o podia ajudar mais.
Marcelo disse no início da legislatura que Campos Fernandes podia ser o protagonista importante num pacto da Saúde em Portugal.
Marcelo Rebelo de Sousa poderia ajudar e incentivar junto do governo a atividade do dr. Adalberto porque desde sempre tem dito isso. Não competindo a mim analisar estados de alma, politicamente parece estar isolado e com muito pouca força. Há uns meses disse que ele estaria refém do Ministério das Finanças. Acho que neste momento, mais que refém, está prisioneiro do Ministério das Finanças. Se tivesse a energia que lhe reconhecíamos há dez anos, a atitude seria diferente.
Foram autorizados os concursos para a contratação dos médicos de família. Em relação aos 700 recém-especialistas hospitalares ainda não há luz verde. Têm perceção de quantos terão sido contratados pelo privado ou emigrado?
Uma pequena história só para contextualizar. Graças à ideia de desregular o SNS protagonizada pelo dr. Correia de Campos com a criação dos hospitais EPE, com o objetivo de esconder o défice público, os concursos estiveram congelados vários anos.
O ministro recordou que esta demora não é inédita.
É verdade. Valha também a verdade que o dr. Paulo Macedo, no momento mais gravoso da intervenção da troika, reassumiu os concursos para recém-especialistas, para a fase intermédia da carreira – os assistentes graduados – e para assistentes graduados sénior. Os concursos são importantes porque obrigam os médicos a estarem constantemente atualizados e a serem avaliados por pares. Aceitámos um mecanismo mais ágil para que os concursos fossem implementados e no primeiro ano funcionou: em três meses estavam os médicos de família a trabalhar e em quatro meses os hospitalares. E isto era importante que acontecesse assim porque estamos a falar de centenas de médicos que fazem imensa falta nos hospitais.
Em todos?
Fazem falta em qualquer hospital, do hospital da província ao Santa Maria. São necessários como pão para a boca porque os recursos humanos estão envelhecidos.
O governo argumenta que, não tendo havido concursos, no período de maior afluência das urgências estes médicos estiveram a trabalhar.
Mas estão a trabalhar noutros hospitais, de forma precária e não com as funções que podiam ter. E cria-se uma instabilidade junto destes médicos que gera um campo simpático para que as PPP e os privados os contratem ou para irem para o estrangeiro. Sabemos que os colegas mais novos que fizeram Erasmus, que têm um contacto com os grandes centros mundiais facilitado e que são queridos pelos grandes centros de investigação a nível mundial são aliciados por representantes dos governos dos países com maior PIB, que duas vezes por ano vêm a Lisboa e ao Porto contratá-los.
Sem falar das ofertas do estrangeiro, quão agressivas são as ofertas dos privados? Vão buscar os melhores?
Desde que saem da faculdade, desde que começam a fazer a investigação, são seguidos pelos gabinetes de scouting dessas instituições e dos grandes grupos privados para que três meses, seis meses antes de acabarem a especialidade já lhes estarem a oferecer contratos.
De quanto?
São contratos que muito facilmente poderão ser cerca de mil euros brutos superiores àquilo que o SNS paga, mas com outras características. Estabilidade, menos horas de prestação de serviço na urgência. Em vez de fazerem mais de 200 horas extra fazem só 150. E depois tratam-nos bem: têm lugar de estacionamento, lugares de relaxe, salas com refeições ligeiras, ao invés de muitos responsáveis máximos dos hospitais do SNS que tratam os profissionais a pontapé. Dou-lhe um exemplo de S. José, onde não é permitido aos anestesistas fazer os descansos compensatórios. A Maternidade Alfredo da Costa impõe aos médicos horários pré-fim da escravatura. As pessoas, à primeira oportunidade, saem.
Nos últimos tempos surgiu uma página no Facebook que junta profissionais de saúde e que ironiza que até os pastéis de nata lhes tiram ao determinar mudanças nos bares do SNS, não obstante a preocupação de saúde pública do governo.
As pessoas sabem o que devem fazer ou não em termos de escolhas, não as podem tratar como imbecis. Tudo isso ajuda. Sabemos que estes 700 médicos especialistas à espera, a cada dia que passa, podem sair. Por insensibilidade social do governo. Não sei neste período de quase um ano quantos saíram.
Mas o que arriscaria? No concurso de médicos de família do ano passado, que demorou cinco meses a abrir, saíram 52 em 218 médicos.
E essa é uma área em que só agora os grandes grupos privados estão a contratar. Destes 700 médicos poderá haver talvez 300 que já tenham sido contratados.
O que é que lhe parece que vai acontecer ou que justifica a demora? Não vão abrir as 700 vagas?
Vão abrir as 700 vagas para o governo depois dizer “estão a ver, nós abrimos as 700 vagas mas não eram necessárias”, para porem o ónus nos médicos que não ficaram, o que achamos inqualificável. E estamos em fevereiro. Abril, quando vai acabar a primeira fase de formação na especialidade deste ano, está quase aí. Os 500 médicos hospitalares e os 400 médicos de Medicina Geral e Familiar que terminam agora vão entrar neste processo.
O SNS precisará de continuar a contratar todos estes recém-especialistas por muito mais anos?
Estamos a falar agora de 600 mil portugueses sem médico de família. Bastariam 300. Mas há reformas e além disso, felizmente, somos uma sociedade que promove a natalidade. Na minha USF em Camarate somos 12 médicos, três homens e nove doutoras, das quais sete altamente férteis. E ainda bem, precisamos de ter crianças. E depois precisamos de acabar com aquela ideia de que os médicos trabalham 24 sobre 24 horas.
Ainda acontece?
Sim, mas há uma nova geração que prefere ir passar um fim de semana com a família e os filhos a ganhar 100 ou 150 euros a trabalhar sábado e domingo. As pessoas são mais exigentes em relação à sua vida pessoal e familiar. Também achamos que termos hoje 1900 doentes na lista é excessivo e que devemos, com calma, reduzir. Tendo a perfeita noção de que não pode ser da noite para o dia.
O governo já disse estar disponível para reduzir as listas de utentes dos médicos de família mais velhos.
Às vezes é dos mais velhos, às vezes dos mais novos. O problema é que “bem prega Frei Tomás”: nem aos novos e nem aos velhos. Portanto, os recém-especialistas têm de ser contratados o mais depressa possível para se ir avançando. Até porque, à medida que o tempo vai passando, os doentes vão ficando mais velhos, com mais doenças e mais pesados, daí que ao assinar-se esse acordo com Paulo Macedo em 2012 foi com a ideia de se passar a prazo para os 1550 utentes por médico.
Os jovens médicos à espera de concursos denunciaram que, apesar de não serem de imediato contratados para o SNS, estavam a ser aliciados por empresas de prestação de serviços para serem colocados como tarefeiros.
A perversão ainda é maior. Ao pagar 21 euros/hora a essas empresas, o Estado acaba por pagar mais do que tendo um recém-especialista contratado no quadro, o que é mais uma razão para não se perceber.
Como é que as empresas têm o contacto destes médicos?
Têm muita forma de saber, não acho que exista ninguém na ARS a dar-lhes esses contactos. São aliciados pelos privados, pelo estrangeiro e por estas empresas. Como é que os descobrem? O certo é que descobrem. Neste momento de certeza que há propostas de contrato para os colegas que vão acabar a especialidade em abril e muitos, vendo esta confusão, estarão mais dispostos a ir.
O governo ainda não fez um balanço da despesa com tarefeiros em 2017, que pretendia reduzir. Que projeção faz?
Em 2016 foi uma despesa de 110 milhões. Em setembro de 2017, numa reunião negocial, num papel oficial da ACSS o valor era superior ao gasto no mesmo período do ano passado. O que não é de surpreender: os médicos reformaram-se, não houve contratações, por isso gastou-se mais.
Quem gere estas empresas?
Não conheço em detalhe mas há multinacionais, empresas detidas por médicos, um pouco de tudo. Farão pela vida. O que nos preocupa mais é que o Estado ao contratar este serviço, não contrata um médico, contrata uma empresa. Quem sabe quem é o médico? Será que ele dormiu? Será que faz os descansos? É um especialista ou é um médico indiferenciado?
Como interagem no centro de saúde?
Atendem os utentes sem médico de família.
Quão desigual é hoje o SNS para quem não tem médico?
Há sérias dificuldades. Todos os dias se lida com os pedidos. Por isso neste momento o mais preocupante é o autismo do Ministério da Saúde ao não perceber que, tendo tantos utentes sem médico, listas de espera para consulta e cirurgia e tanta pressão para contratar estes médicos, nada faça e passado um ano acabe por abrir os concursos. Não é compreensível.
Fizeram um levantamento e há várias especialidades com esperas de dois anos por consulta. No caso das cirurgias, há os vales cirurgia para os doentes serem operados no privado. O governo devia ir por aí nas consultas?
Acho muito pernicioso quer uma coisa quer outra.
Mesmo sendo um homem de direita.
Alimenta a procura.
Fazendo-se isso, gastar-se-ia mais com mais consultas?
Sim, a não ser que para fazer isso fosse preciso grandes justificações. É preciso é fortalecer o SNS. Na prática isso é dar dinheiro. No Algarve estamos a falar de 3 milhões de euros por ano a uma clínica particular em Faro só em cirurgias.
Mas os doentes têm resposta a tempo.
Existe aquele sistema na Madeira em que um doente tem x de comparticipação e pode escolher o médico, mas isto em termos financeiros parece-me complicado. Se o governo não consegue contratar recém-especialistas por um preço baixíssimo, mais dificuldade terá em encontrar forma de pagar esse tipo de soluções.
Falou-se nos anos da troika de limitações à prática médica, de os médicos não poderem prescrever todos os exames. Há limitações?
Não. Um indicador no desempenho das Unidades de Saúde Familiar prende-se com questões financeiras mas não creio que existam. Acho que o governo poderia usar melhor por exemplo as normas de orientação clínica: havendo estas normas consensualizadas entre os médicos e a Direção Geral da Saúde e que refletem o estado da arte, é o melhor caminho para haver poupanças na saúde.
Mas as normas são seguidas ou não?
São seguidas mas precisavam de ser atualizadas. As primeiras têm oito anos. Depois as pessoas têm tendência a querer fazer tudo, adoram fazer uma TAC à cabeça, julgam que o exame miraculosamente lhes vai tirar o que quer que seja. Ainda há a ideia que uma pessoa quando vai ao médico e vem sem um exame ou qualquer outro meio complementar de diagnóstico, o médico não é bom. Mas no que toca a limitações, nunca ninguém se atreveu a dizer-me que não devia passar este ou aquele exame.
Os médicos de família funcionam um pouco também como psicólogos.
Faz parte. Há muita solidão, muita depressão.
Veem-se sinais da recuperação económica do país?
Há uma recuperação económica? Neste momento não é possível em termos práticos dizer algo com bases científicas. A verdade é que, ao diminuir o desemprego, muda completamente a perspetiva de vida das pessoas. Mesmo que seja emprego precário, emprego com ordenado mínimo, é melhor do que nada. O desemprego é devastador na vida de uma família. Mesmo nos dois últimos anos do governo anterior o emprego foi crescendo, também precário.
Viu muito desespero nos anos da troika?
Sim. Camarate é uma área com dificuldades económicas. O turismo e a construção civil vieram dar um grande alento.
Os médicos têm uma greve pré-anunciada para março. Está dependente de quê?
De haver da parte do Ministério da Saúde alguma capacidade de concretizar um conjunto de medidas que, no nosso ponto de vista, são relativamente simples. E vai ser necessário falar de salários. Há dez anos que não há um aumento de salários.
Mas o acordo de 2012 que passou o horário de trabalho dos médicos para 40 horas e aumentou listas de utentes implicou subidas nos salários.
Quem estava em 35 horas recebe a mesma coisa, não houve aumento. Quem passou para as 40 horas passou a ter mais cinco horas de trabalho.
Mas na restante função pública impôs-se as 40 horas sem ganharem mais.
Regressaram agora às 35 horas. No caso dos médicos, em vez de 12 horas de urgência passaram a fazer 18. Em vez de 1500 utentes passaram a ter 1900. Não foi um aumento salarial. Nós, aliás, bem que podíamos voltar para as 35 horas, não havia qualquer problema.
Está em cima da mesa?
Não está porque não é possível. Foi o assinado e nós não voltamos atrás.
Mas arrepende-se?
Se fosse possível voltar atrás, acredito que há muita gente que voltaria, nomeadamente por menos tempo da urgência.
Em relação a esse ponto, o ministro da Saúde argumenta que apenas 13% dos médicos fazem 18 horas nas urgências, porque alguns profissionais que aderiram a este regime estavam perto da idade de escusa e há especialidades que não são tão requeridas nas urgências.
Então está o problema resolvido se são muito poucos.
O governo di-lo como resposta à ideia dos sindicatos de que, fazendo menos urgências, os médicos fariam mais consultas programadas.
Também dizem que não o fazem por causa do serviço de urgência. Se são poucos os médicos, afeta pouco… É uma questão de princípio: num horário de 40 horas, 18 horas de urgência deixa 22 horas para enfermarias, consultas e cirurgias. E além disso disponibilizámo-nos para que houvesse médicos, sejam cirurgiões, pediatras ou internistas, a ficar três meses dedicados às urgências. Em vez de estarem na enfermaria só fariam isso.
Estão previstos para este ano projetos piloto nesse sentido.
Não é preciso pilotar o que quer que seja porque isso já é possível. Temos um acordo desse género em Cascais. Toda a gente diz que 18 horas semanais nas urgências são um disparate. O dr. Adalberto, quando estava na oposição, achava justamente isso. Há centenas de médicos para, em períodos de três meses ou seis, começarem a fazer só urgências. São centenas de milhares de horas. Claro que a troco de uma pequena compensação financeira mas que ficará longe do que pagam às empresas de prestação de serviços.
E há médicos para isso?
Há malucos para tudo.
Porque é que diz isso?
Há pessoas que gostam da adrenalina da urgência. A nossa proposta eram três turnos de 12 horas por semana.
Mas qual é o ponto mais tenso nas negociações que justifica a ameaça de uma nova greve?
Desde a última greve em novembro até agora não tinha acontecido nada. Tivemos de preanunciar uma greve para nos convocarem. Mas eu sou um otimista.
A greve não vai acontecer?
Espero que haja diálogo. Somos um sindicato de acordos e, enquanto houver um processo negocial, julgamos ser possível.
A exclusividade dos médicos no SNS poderá ser um assunto a negociar?
Quem tirou a exclusividade dos médicos foi o ministro Correia de Campos. Achava que não tinha dinheiro para pagar.
Traria alguma vantagem?
Se pagassem bem e se fosse voluntário, como foi com a dra. Leonor Beleza, com certeza. Agora numa perspetiva de falta de médicos como a que existe no país parece-me disparatado.
Em 2019 o SNS fará 40 anos e fala-se de uma revisão da Lei de Bases da Saúde. Como vê esta discussão?
Folclore. Politiquices. Acho até muito estranho que na comissão criada pelo governo não exista um médico.
Mas parece-lhe necessário um pacto no setor como defende Marcelo?
Não é preciso mudar nada. É preciso discutir seriamente o financiamento do SNS no sentido de haver um reforço. Está subfinanciado há 10 anos.
As ordens chegaram a falar de serem precisos mais 1200 milhões de euros/ano. É por aí?
Quando o presidente do IPO diz que há um doente que custa meio milhão de euros por ano…
É o custo dos medicamentos inovadores. Há muita pressão da indústria para os médicos de família prescreverem novos medicamentos?
Não. E a partir do momento em que passou a haver as normas de orientação clínica fica o problema resolvido.
No passado havia mais propaganda?
Havia sempre aquela ideia de que os medicamentos mais novos eram os mais interessantes.
Esteve no congresso do PSD.
Fui lá mas não tenho nenhum cargo.
Apoiou Rui Rio?
Não apoiei ninguém. Apoio os médicos e o SNS.
Rio foi bastante crítico da governação na área da saúde mas disse que o SNS pode coabitar com o serviço privado e que o lucro na saúde não pode ser visto como algo ilegítimo. Concorda com a visão do líder partidário?
Na saúde há lugar para o SNS, para o setor social e para o setor privado, tem é de haver regras de incompatibilidade muito claras.
Essas regras existem?
Sim, têm é de ser respeitadas e de haver mecanismos de fiscalização. Mas apesar de tudo, isso acaba por acontecer. A prescrição eletrónica de medicamentos e dispositivos médicos veio dar uma grande ajuda de combate à corrupção. Em relação ao PSD, desejo boa sorte ao PSD, como desejo boa sorte ao CDS e ao dr. Moisés, que nos tem dado uma grande ajuda, e ao PCP, que também tem sido muito simpático connosco e nos tem compreendido. Gostava também de desejar boa sorte ao dr. Adalberto mas, infelizmente, ele está de mãos atadas.
Tem planos para regressar à política?
Não. Nos próximos três anos com certeza que não porque vou recandidatar-me a secretário-geral do SIM e enquanto estiver nesta cadeira não irei ter qualquer cargo no PSD.
Como tem visto a tensão na ADSE entre a direção e os prestadores para reduzir a despesa?
Na ADSE tem de haver controlo da despesa e das prescrições e o bom senso de não afunilar todos os seus gastos em iniciativas de baixos custos. Isto é, aquilo que os beneficiários da ADSE pagam além dos impostos, que é 3,5% do seu salário, obriga a que sejam tratados como clientes e não como meros totós.
É assim que têm sido tratados?
Nos últimos anos têm sido tratados como membros acéfalos.
Mesmo com os benefícios que têm?
Descontam para isso 3,5% por mês. Um assistente graduado que ganhe 3000 euros brutos/mês paga 90 euros por mês. Claro que há pessoas que ganham 600 euros e pagam 18 euros. É certo que deve haver controlo das despesas para garantir que os prestadores não estão a sobrefaturar, quer na questão do preço quer no número de atos.
Acompanha a visão do presidente da ADSE de que existe sobrefaturação?
Existe esse perigo, não tenho dados para dizer mais que isso. Mas controlar não pode querer dizer que, de repente, se deixa de ter acesso aos prestadores. Tem de haver equilíbrio e bom senso. É preciso uma atitude próxima da dos seguros, que têm regras e as pessoas sabem que, se são apanhadas em fraude e sobrefaturações, são sujeitas a investigação e penalização.
Que balanço faz dos primeiros meses da ADSE como instituto público?
Ainda é cedo para avaliar.
Já tem quantos anos de médico de família?
Terminei a especialidade em 2006.
Mas foi uma vocação tardia?
Não. O meu pai é médico, eu nasci em 1960 e em 1984 licenciei-me como médico. Em 1986 fiz o internato geral. Depois entre 87 e 1999 fui deputado e regressei para tirar a especialidade.
Deve ter sido uma saída um pouco atípica, até numa altura em que a atividade política estava talvez mais credibilizada.
Pois. Mas eu sempre quis ser médico de família. Adoro ser médico e sempre achei que a minha passagem na política tinha sido uma coisa meramente circunstancial.
Como é que se meteu na política?
Fui presidente da associação de estudantes. Depois em 1987 era presidente da distrital de Lisboa da JSD. O meu nome foi o mais votado mas indiquei dois elementos da JSD à minha frente. Só que foi na altura que o prof. Cavaco Silva teve maioria absoluta por isso acabei por ir para o parlamento. Em 1999 mudou a direção do partido para o Dr. Durão Barroso e eu já sabia que os ventos iam ser adversos à minha continuidade.
Não eram amigos?
Digamos que havia pouca sintonia com Nuno Morais Sarmento na altura. E então fiz uma coisa espetacular que foi voltar para interno do primeiro ano de Medicina Geral e Familiar.
Poderia ter seguido outra via, uma nomeação política. Teve convites?
Com certeza que sim. Mas uma coisa importante da minha vida é que nunca fui nomeado para coisa nenhuma. Fui eleito para a associação de estudantes, presidente da distrital da JSD, vice-presidente da comissão política da JSD, membro da AR, secretário-geral do SIM, só órgãos de eleição, não gosto de órgãos de nomeação.
Como foi voltar a aluno?
Foi duro, começar do zero. O meu orientador, que era da minha idade, confessou-me mais tarde que ficou um pouco apreensivo, mas como ele diz fui dos internos que menos trabalho lhe deu, cumpria os prazos todos. Quando estava no parlamento tinha alguma nostalgia porque achava que era médico. Mesmo agora, sendo secretário-geral do SIM, não deixo de ser médico de família em Camarate.
O que o entusiasma na Medicina?
Gosto de falar com as pessoas, de ajudar a resolver os problemas. E em Camarate são pessoas que precisam mesmo de cuidados médicos.
Vê muita pobreza?
Tem gente com dificuldades económicas mas também tem muita gente com as suas leiras de terreno, que fazem o favor depois de oferecer umas couves, uns ovinhos.
E pode aceitar? Há o limite de 25 euros para ofertas, não é?
Acho que já passou para 60 euros.
Dá para um cabrito.
(Risos) Metade de um cabrito talvez, não o farei agora por razões de obesidade. Mas isto para dizer que sempre me vi como médico e à medida que o tempo ia passando ficava apreensivo porque não me via como político profissional.
Mas não se arrependeu.
Não, gostei e nos sítios por onde passei acabei por fazer alguma coisa de útil. Mas não tenho nostalgia disso, estou bem onde estou. O SIM é uma importante força de acordos. Assinámos 32 acordos, ainda recentemente chegámos a acordo com uma PPP em Vila Franca de Xira, com o Ministério da Defesa.
O facto de ser do PSD não se reflete a forma como comanda o sindicato?
As pessoas conhecem-me e sabem que antes de ser do PSD sou secretário-geral do SIM.
Estão mais ativos esta legislatura, não? No governo anterior tentaram silenciar a sua ação?
Não é verdade. A razão de estarmos mais ativos tem a ver com a incompetência que este governo tem em resolver problemas. O dr. Passos Coelho, sendo meu amigo pessoal, nunca me telefonou a fazer qualquer tipo de pressão durante um processo negocial nem eu falei com ele sobre o que quer que seja. E fizemos uma greve. Só não fizemos mais porque houve seriedade negocial da parte de Paulo Macedo e chegámos a acordo. Agora a ideia inicial da greve de três dias foi dos nossos colegas da FNAM, que são insuspeitos de estarem ligados ao PSD.
O que acha da ideia do bastonário de se deixar de chamar doutor aos médicos, já que hoje toda a gente é doutor.
Se calhar faz sentido. O dr. Miguel Guimarães tem sido um excelente bastonário, defendido com galhardia e seriedade as posições dos médicos e essa será uma matéria a debater, com certeza não será a mais relevante mas iremos pensar.
Falou da obesidade.
É uma doença que eu finalmente encaro e irei tratar através de todos os meios.
Estava em negação?
Achei que não me ia acontecer nada e que um dia me apetecia e perderia peso, uma vez que no meu passado era um rapaz muito elegante. Mesmo magrinho. Era conhecido pelo Jorginho do Biafra…
Comia muito?
Muito e de uma forma irracional. E essa convicção de que se me apetecesse conseguiria perder peso estava alicerçada na na força que tenho tido para as coisas que tenho querido na minha vida. Foi assim com o tabaco: há um ano e dois meses decidi deixar de fumar e até isso consegui.
Não tornou a pegar num cigarro?
Não tornei a pegar nem penso nisso, porque me senti 15 dias depois logo melhor em termos de respiração.
Apanhou algum susto?
De saúde não. A única coisa bastante desagradável era eu chegar ao centro de saúde e toda a gente saber que eu lá estava por causa da minha tosse. Ou quando subia umas escadas…
E compensou com alguma coisa?
Não. No caso da comida era mera gula. Gosto de cozinhar, de conviver e agora vou fazendo menos. Já perdi oito quilos.
Cortou com alguma coisa de vez?
Folhados de salsicha com Sumol de laranja ao pequeno-almoço.
Sente que isso melhorou a forma como aconselha uma pessoa que queira perder peso, saber o que custa?
Eu já sabia que custava muito, são muitas tentações. Estamos na fase da lampreia. É gostar ou odiar e eu gosto muito: tenho quatro grupos de amigos da lampreia, discutimos onde é que há a melhor lampreia, se é no Lumiar, em Benfica, no Figo Maduro ou ali ao pé do mercado de Alvalade. E é ir a cada sítio e depois descobre-se outro. Arroz de lampreia ao jantar, cozido ao jantar… não pode ser. E depois o ginásio. Não dá, mas a partir de segunda-feira vou fazer umas caminhadas.
É a meia-idade, o medo da morte?
É ter juízo na cabeça, já devia ter tido. Foi uma epifania.