Visitaram uma dezena de esquadras e praticamente o mesmo número de prisões, e a avaliação é conhecida esta terça-feira: o comité antitortura do Conselho da Europa encontrou alegações de maus-tratos por parte das forças de segurança em Portugal e algumas instalações prisionais com condições desumanas.
O relatório que será divulgado hoje em Estrasburgo, a que o i teve acesso, fala de chapadas, murros e algemas demasiado apertadas em algumas detenções, em particular quando estão em causa cidadãos de nacionalidade estrangeira. Nas prisões, além do alerta para o problema crónico da sobrelotação, a delegação alerta para lacunas como a falta de programas de reabilitação, a falta de condições e espaço nas instalações – por exemplo, no Estabelecimento Prisional de Lisboa foram observados ratos nas celas -, mas também a falta de respostas adequadas em termos de saúde. Aqui, um dos destaques da avaliação vai mesmo para o apoio especializado. O comité recomenda, por exemplo, o fecho da clínica psiquiátrica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, por falta de condições.
Quinze dias de visita
A visita da delegação do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (CPT na sigla em inglês), chefiada pela austríaca Julia Kozma (ver entrevista nas próximas páginas), teve lugar entre 26 de setembro e 7 de outubro de 2016. O relatório com as conclusões foi submetido ao governo em março de 2017, mas a responsável diz ao i que as respostas do Ministério da Justiça foram mais satisfatórias do que as do Ministério da Administração Interna. Na explanação do Ministério da Justiça é referido, por exemplo, que o problema de congestionamento das prisões portuguesas está a ser resolvido e apresentava, no fim de 2017, melhores indicadores do que aquando da visita. “O sistema já não está sobrelotado”, diz mesmo a resposta do gabinete de Francisca Van Dunem remetida ao Conselho da Europa, apontando para uma taxa de ocupação de 99,4%. Ainda assim, reconhece a tutela, das 21 cadeias de maior complexidade, nove encontram-se sobrelotadas mas a evoluir positivamente, e já não há nenhum caso de ocupação a 200%, a realidade encontrada pela delegação na prisão de Setúbal e que é considerada no relatório “dramática”. Durante a visita, a delegação alertou, por exemplo, para prisioneiros confinados a espaços com menos de 3 m2 ou isolados nas suas celas até 23 horas por dia.
Tolerância zero contra a violência policial
Já no que diz respeito à ação das forças de segurança, o facto de o Ministério da Administração Interna remeter para a ação da Inspeção-Geral da Administração Interna não é considerado suficiente pela delegação, que fala de um problema sistémico e não de um pedido para serem avaliados casos em particular. No relatório, os membros do comité sublinham que, apesar de a maioria das pessoas ouvidas durante a visita referirem ter sido bem tratadas quando estiveram sob custódia policial, há um considerável número de alegações de maus-tratos no momento da detenção, antes da chegada às instalações policiais, bem como durante a permanência em esquadras/quartéis. “Os alegados maus-tratos consistem primariamente em chapadas, murros e pontapés no corpo e/ou cabeça, bem como, ocasionalmente, o uso de bastões e sticks”, lê-se no relatório. “Da evidência reunida pela delegação do CPT (…) parece que o recurso a maus-tratos, em particular contra cidadãos estrangeiros, incluindo com o propósito de obter confissões, não é pouco frequente. São precisos esforços acrescidos e uma ação determinada para combater os maus-tratos policiais”, defende a análise da delegação, que refere ter ouvido em particular relatos de cidadãos de cor.
No documento são referidos, ainda assim, um conjunto de casos sobre os quais o comité pede para ser informado sobre o estado das investigações. O primeiro diz respeito a um cidadão de nacionalidade georgiana que foi algemado a uma cadeira enquanto foi interrogado na esquadra da PSP Pontinha-Loures, onde terá sido agredido na cabeça com um bastão duas vezes durante o interrogatório. Este indivíduo foi observado pelo médico da delegação, que confirmou lesões coincidentes com o relato. A delegação do CPT examinou os registos da detenção, que não faziam qualquer referência a violência no momento da detenção. Além de registos completos, o comité recomenda às autoridades portuguesas que promovam uma mensagem “clara e firme” de tolerância zero aos maus-tratos a pessoas privadas de liberdade.
O relatório é tornado público agora pelo Conselho da Europa a pedido das autoridades portuguesas, como é habitual nestas rondas de avaliação externa.
Uma das recomendações do Conselho da Europa passa pelo reforço das competências da Inspeção-Geral da Administração Interna, nomeadamente na autonomia para pedir exames médicos forenses perante alguma suspeita de maus-tratos por parte de agentes das forças de segurança. “Em muitos casos, a falta de evidência médica foi um fator central para não se prosseguir com alegados casos de maus-tratos por parte de oficiais das forças de segurança”, lê-se no relatório. O Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (CPT) considera mesmo que o facto de o Ministério da Administração Interna ter de aprovar a abertura de processos disciplinares põe em causa a independência da IGAI. “Mesmo que na prática seja apenas uma formalidade, este requisito não devia existir”, considera a delegação.
O CPT recomenda mesmo às autoridades portuguesas que considerem a possibilidade de transformar a IGAI num organismo completamente independente que pudesse apoiar o Ministério Público na investigação destes casos e reforçar assim uma mensagem de determinação das autoridades portuguesas em combater a impunidade. Nesse sentido, o comité saúda a informação por parte do governo português sobre a intenção de rever a lei orgânica da inspeção-geral.