João Varela Gomes. O adeus definitivo ao herói silenciado

Viveu a prisão na ditadura e o exílio na democracia, diziam dele ter sido o primeiro capitão de Abril. Morreu agora aos 93 anos

João Varela Gomes, que na segunda-feira faleceu aos 93 anos, foi um homem que teve um papel ímpar na nossa história contemporânea, mas a quem o desfecho da Revolução do 25 de Abril e o seu fim votaram ao esquecimento – mesmo que muitas vezes lhe chamem o primeiro capitão de Abril. Um processo que não foi inocente, mas propositado, sistemático, mantido pelo controlo dos aparelhos ideológicos do Estado, que tudo fizeram para que o verdadeiramente divergente seja menorizado.

Nascido em Lisboa, em 1924, envolveu-se ativamente na candidatura de Humberto Delgado (1958), fez parte da conspiração da Sé (1959) e, em 1961, juntou–se a outros prestigiados democratas na apresentação de uma candidatura à Assembleia Nacional. Hábil na forma como fez o pedido, Varela Gomes conseguiu convencer os seus superiores na hierarquia militar a autorizarem a sua integração nas listas.

Nos comícios da campanha eleitoral, realizados no distrito de Lisboa, ficou célebre o empolgante discurso que fez no Teatro da Trindade, incentivando os presentes à revolta contra o regime. Tal foi a marca que deixou que um agente da PIDE escreveu no seu relatório: “Varela Gomes foi muito ovacionado, com a assistência em pé. Foi, de todos os oradores, aquele que mais atacou Sua Excelência o presidente do Conselho e todo o governo.” O “New York Times” considera-o, num dos seus artigos sobre Portugal escritos na altura, “um líder político emergente da esquerda”.

Participou no golpe de Beja, em 1961. Apesar de reticente em relação a muitos aspetos desta conspiração dos setores ligados ao general Humberto Delgado, toma a dianteira na execução da ação da tomada do quartel de Beja. É gravemente ferido durante o processo de tentar convencer um oficial do regime a render-se.

Julgado e condenado em tribunal plenário, esteve preso durante seis anos e foi expulso do exército, acusado pelo seu papel decisivo na Revolta de Beja. Os ferimentos graves obrigam à extração de um rim e do baço, o que justifica em parte a sua fragilidade física, a exigir cuidados médicos especiais ao sair da prisão, seis anos depois. Mesmo assim, continuou o seu combate contra o antigo regime, nas fileiras da CDE.

Após o 25 de Abril foi reintegrado com o posto de coronel. Colocado na Comissão de Extinção da PIDE, foi preso pelos spinolistas, acusado de ter retirado documentos do arquivo da política política – acusação essa que sempre negou. Embora seja moda a publicação de alguns arquivos como os de Mitrokhin, de um desertor da KGB, a verdade é que grande parte da fuga dos arquivos para os EUA e a França, como os da colaboração da CIA e dos serviços secretos franceses com o regime, se dá com figuras gradas dos spinolistas à frente dos ditos arquivos.

Libertado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) depois dessa curta detenção, é colocado à frente da Quinta Divisão. Tem um papel destacado na reação do MFA ao golpe de direita de 11 de março. Dirige as campanhas de dinamização popular com que os militares revolucionários pretendem envolver os setores mais carenciados da população, para além de combaterem o analfabetismo. É o homem que, com um contingente de operários da Sorefame, retira o nome de Salazar da ponte sobre o Tejo e a rebatiza como Ponte 25 de Abril. Com o andamento da revolução, transformou-se numa das figuras cimeiras da “esquerda do MFA”.

Em 1975 viu-se obrigado ao exílio ao ter recebido um pré-aviso de captura, na sequência do 25 de Novembro. Em 1979 pôde regressar a Portugal, viu anulado o mandado de captura que o atirara para Angola e Moçambique, mas teve de aguardar muito tempo até poder reingressar nas Forças Armadas. Nunca chegou a ser julgado, não obstante ter-lhe sido aplicada (a si e outros militares) a pena administrativa (e ilegal) de passagem ao quadro de complemento (milicianos). O Tribunal Superior Administrativo demorou cinco anos para anular esta deliberação e, em 1982, foi integrado como coronel, mas na reforma.

Na sua corajosa defesa no processo do golpe de Beja, no tribunal plenário, em julho de 1964, Varela Gomes pronuncia a sua versão de “a história me absolverá”, de Fidel Castro, ao dizer frente aos magistrados e acusadores do regime fascista: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos.”