No verão de 2013 os velhos bairros operários de Ghuta Oriental quase provocaram o princípio do fim da guerra síria e a derrocada do seu ditador. Os norte-americanos chegaram a anunciá-lo, mas Barack Obama, ciente do que provocou a mão americana no Afeganistão, Iraque e Líbia, não autorizou os bombardeamentos já preparados contra estruturas vitais em Damasco para puni-la pelos ataques químicos contra a população rebelde dos subúrbios. Os Estados Unidos aceitaram em vez disso as promessas sírias e russas de que Bashar al-Assad e os seus generais não voltariam a atacar a sua população com o agente nervoso Sarin. Mentiram. A ONU diz que o fizeram novamente há não muito tempo no norte do país. E hoje Ghuta Oriental não é mais um caminho para o fim da guerra e de Assad. É símbolo e prova de que o ditador sírio não vai a lado nenhum e que a guerra não está para acabar. O conflito está talvez no seu ponto mais violento e volátil e a população de Ghuta Oriental encontra-se novamente diante do pelotão de fuzilamento. E há pouco, muito pouco, que em Washington se possa ou deseje fazer.
Entre os nove dias que correram entre 18 e 27 de fevereiro, o regime sírio e aliados russos mataram mais de 770 pessoas nos bairros de Ghuta Oriental. Anunciaram-no ontem os Médicos Sem Fronteiras, que patrocinam alguns dos hospitais e clínicas subterrâneas ainda em atividade nos subúrbios de Damasco. A organização humanitária diz também que os números mais recentes para a grande vaga de ataques do regime sugerem mais de quatro mil feridos e vários hospitais inutilizados pelas bombas. A mortandade dessa semana não é inteiramente nova, embora os seus números só agora ganhem as verdadeiras proporções. As equipas de resgate demoraram a encontrar os corpos em parte porque não se sentiam seguras a vascular pelos escombros com os caças do regime e do governo russo nos ares. A violência mudou de proporções esta semana, mas só marginalmente e, segundo todos os cálculos humanitários, violentamente longe do necessário.
A semana passou-se em fracassos diplomáticos, falsas partidas humanitárias, invasões e bombardeamentos intermitentes. O Conselho de Segurança das Nações Unidas viu fracassar o cessar-fogo que aprovou com dificuldade no último sábado e que daria cobertura à ajuda humanitária que centenas de milhares de pessoas pedem nas populações cercadas de Ghuta, Afrin ou Idlib. Não se chegou a assistir sequer a uma forma desfigurada da trégua. Na segunda-feira, demonstrando com toda a nitidez que tudo o que diz respeito à guerra síria passa agora por Moscovo, Vladimir Putin anunciou a sua solução para a violência: pausas diárias de cinco horas, entre o pequeno-almoço e o início da tarde, suficientes, segundo promete, para que famílias e residentes não armados regressem aos territórios do regime e a ajuda humanitária entre nos enclaves cercados. A trégua demorou a colar e só ao segundo dia os ataques aéreos pararam – as outras armas, a artilharia e os rockets, não.
Até ontem, nada se materializara em termos de ajuda humanitária e circulação das populações cercadas. Todas as organizações humanitárias com experiência na guerra afirmam que é impossível entregar ajuda humanitária em apenas cinco horas em qualquer território contestado. E enquanto não entra ajuda nem saem feridos, o exército sírio que Bashar al-Assad foi enviando ao longo das últimas semanas para os acessos aos subúrbios avança nas suas operações de invasão. Ontem conquistou vários bairros e pequenas zonas rurais na zona leste de Ghuta. É uma estratégia conhecida e já experimentada em Alepo: a semanas de ataques aéreos violentos seguem-se dias de operações contra combatentes cansados e populações desesperadas. Bairro a bairro toma-se uma cidade e pelo meio permite-se algum alívio humanitário, como o que o Comité Internacional da Cruz Vermelha dizia ontem ter sido autorizado para domingo. Alepo caiu nos últimos meses de 2016 para as mãos de Assad. Ghuta pode cair em breve. Enquanto isso não acontece, há 400 mil pessoas e 200 mil crianças no meio da guerra urbana e sob bombardeamentos indiscriminados. «As esperanças transformaram-se em ilusões, as janelas fecharam-se com um estrondo diante as nossas caras», escrevia ontem a UNICEF. «A guerra contra as crianças na Síria não está a parar… a Síria é ainda hoje um dos sítios mais perigosos para se ser criança».