A cadeira de García Márquez…

Quando era menino, em Aracataca, Gabrielito gostava de ficar na baliza. Até que teve pela frente um avançado assassino

Certa vez Rita Hayworth foi à Colômbia. Não sei agora em que ano, mas isso também não importa muito para as histórias que se seguem. Porque eu quero mesmo é falar de Gabriel García Márquez, a quem chamavam o Gabo. 
Rita Hayworth tinha um nome espampanante mas não era o dela. Esse era Margarita Carmen Cansino. Nasceu em Brooklyn e o pai era sevilhano: Eduardo Cansino. O Hayworth tirou da mãe, muitos anos depois, quando percebeu que, obrigada que fora a dançar boleros e sevilhanas, se arriscava a não ir além de corista na selva faiscante de Hollywood. Aos oito anos já tinha feito um papelzinho menor no filme La Fiesta, da Warner Bros. «Eu detestava aquilo», confessou mais tarde. «Mas tanto o meu pai como o meu avô insistiam: ensaios, ensaios e mais ensaios. Um horror! E eu com medo de lhes dizer não».

Vamos então à sua viagem à Colômbia. Já era a Rita Hayworth que se colara como um íman a Fred Astaire em You’ll Never Get Rich, balouçando ambos no ecrã com um magnetismo de provocar aneurismas a Ginger Rogers. Já tinha sido fotografada para a Life com um negligé que se lhe colara de tal forma ao corpo que não deixava nada para adivinhar a qualquer mente mais maliciosa. Já fora a bomba sexual Gilda e The Lady From Shanghai. Gabriel Garcia Marques, escreveu uma das suas reportagens tão explosivas como a própria Hayworth: Rita se Dispone a Envejecer…

Não direi que escrever sobre atrizes de Hollywood fosse a grande especialidade de Gabo, embora ele dominasse tão completamente a caneta em qualquer terreno como Pelé dominava a bola com qualquer dos pés mesmo lá nos campinhos ervados de Três Corações.

O título é tão brilhante como outro da mesma altura da carreira do escritor/jornalista: Antonio Novales, un romantico campesino de veintiún años que no era mas que un muchacho madrugador y honrado…

Era o novelista a tomar conta das páginas do seu jornal.

Dou por mim a pensar que, ultimamente, tenho escrito aqui muito sobre jornalistas, o que não tem nada de negativo, claro está, foi com jornalistas que aprendi a ser jornalista e a ter a vontade de esclarecer e de ser útil.

Baptista Bastos, que conheci há muitos anos na velha A Bola, trabalhando ele para o Diário Popular, escreveu também sobre Gabriel Garcia Marquez de quem foi amigo: «Nunca o espantoso autor de Crónica de Uma Morte Anunciada (um prodígio de maestria clássica e estilística, e, claro!, uma densa reportagem ficcionada), deixou o jornalismo. O jornalismo ensinou-o a tomar o peso etéreo das emoções, impeliu-o para esse humanismo jubiloso e patético que os seus romances tão bem exprimem. Mais: o jornalismo adestrou-lhe a mão latina e índia, e revelou-lhe a áspera delicadeza das palavras».

Que maravilha! Dá vontade de ir a correr ser jornalista, encher páginas e páginas com a visão do repórter sobre o dia a dia da Humanidade. 

Aliás, tal como Castelar de Carvalho dizia que não havia jornalismo sem passarinho (já contei aqui o episódio várias vezes), eu digo que não há jornalismo sem sair da cadeira e ir por aí farejar o mundo.

E este Gabo de que Baptista Bastos fala não era ainda Gabo.

Era o Gabrielito e escrevia no El Universal de Cartagena das Índias.

Fui a Cartagena das Índias por causa de Gabriel García Márquez sem saber que Rita Hayworth por lá tinha passado como um furacão que devasta as costas do Mar das Caraíbas.

Não era ainda o senhor gorducho de bigodes brancos, espécie de irmão da Mamã grande. Era um rapazinho magro de bigodinho à Clark Gable.

Repórter desportivo, também.

E um desportista intenso, incansável, lutador.

Recusava a preguiça da cadeira. E fez textos extraordinários sobre ciclismo, boxe, touros e futebol. Estão aí para os lermos.

Em Aracataca, quando era menino,Gabo gostava de ficar na baliza. Um dia defrontou um avançado-centro sanguinário.

O remate inimigo trazia consigo a frase assassina: «Que te mate coño!». A bola atingiu-o em cheio na boca do estômago, embargou-lhe a respiração e deixou-o KO.

Não voltou a jogar.

Os amigos puseram-lhe a alcunha sarcástica de Viejo.

Mas isso não o distanciou dos estádios. Escreveu sobre Di Stéfano algumas das páginas mais extraordinárias alguma vez publicadas. Sublinhava: «A sua técnica é comparável à retórica».

Quando lhe perguntaram qual o desporto que desafiava mais concretamente o jornalismo, foi directo: «El periodismo es la profesión que más se parece al boxeo, con la ventaja de que siempre gana la máquina y la desventaja de que no se permite tirar la toalla».

E, depois, levantava-se da cadeira e ia escrever o mundo.