Livrarias independentes. A brecha que persiste e a urgência de um leitor ativista

Se as livrarias hoje só merecem atenção quando encostadas à parede de um obituário, o encerramento de mais três voltou a gerar muita comoção, mas o que faltou foi ir mais longe na leitura das pistas de um crime com muitos culpados

Ressoou como toque de clarim a notícia do encerramento de duas livrarias independentes no início do mês. Trinta e um de março: uma data para duas mortes anunciadas. Só o tempo de chegar a primavera e logo será cortada a respiração assistida à Pó dos Livros, na capital, e à Livraria Miguel de Carvalho, na cidade dos estudantes. Umas semanas antes, fora o Porto a receber a notícia de que a Leitura ia fechar a meses de fazer 50 anos. O três-em-um deu para o calafrio, com o canto de cisne dividido entre dois centros urbanos vibrantes e um agonizante. Prontamente, os diferentes canais da imprensa diária, rádios e até televisões mobilizaram-se. Houve comoção, as banais acusações dirigidas à época – esse tão difuso bode expiatório – e, como de costume, sempre que os barcos de flores começam a afundar, os primeiros baldes lançados borda fora eram de lágrimas. Com o horizonte tão despovoado, o drama agora é saber o que vai ser da morte quando já não lhe restarem opções no menu. E das carpideiras, o que vai ser? Os últimos anos deram numa verdadeira algazarra naval no setor livreiro. E é realmente uma pena que as livrarias, e sobretudo as históricas, das catedrais aos pequenos antros, algumas persistindo como moribundas, pareçam ter chegado ao limite. Afinal, também “a esperança rouba o tempo das nossas vidas”.

Neste crime de responsabilidade partilhada, cada um engendra um álibi ou expia os seus pecados, mas o certo é que as livrarias independentes não continuam a encerrar por terem clientes à fartazana. Como Miguel de Carvalho refere na entrevista que se reproduz na página seguinte, a notícia do encerramento da sua livraria deu origem a “um cortejo público de vaidades”, marcado por “lamentações, choros e clamores aos céus por tamanha desgraça”. E não lhe escapou a ironia de este coro tão bem ensaiado ter contado com muitas mais pessoas do que aquelas que foram compondo a clientela da livraria ao longo dos anos. Mas deixando de parte a hipocrisia, o voluntarismo e a boa vontade que irrompem e desfalecem nas redes sociais, há algo mais do que negligência no processo de desaparecimento daquelas livrarias que mantêm autonomia face aos grupos económicos que hoje determinam aquilo que lemos.

E porque em Portugal não se inventou a roda nem ela chegou cá mais cedo do que a outros mercados, convém perceber o modelo que desde há pouco mais de uma década foi copiado a papel químico pelos nossos empresários que se ocupam do negócio dos livros. Para um relato desse homicídio temos um testemunho-chave no livro “O Negócio dos Livros”, de André Schiffrin, publicado pela Letra Livre – uma das poucas livrarias independentes que resistem em Lisboa num vital alheamento face à ideologia do mercado, ou seja, essa “fé na sua capacidade de conquistar tudo, a disposição de lhe submeter todos os outros valores – e até a crença de que tal representa uma espécie de democracia de consumo”. Portanto, tudo aquilo em que nos últimos anos se tornou “a imagem de marca da edição”.

André é o filho de Jacques Schiffrin, judeu russo emigrado em França que, antes de escapar à ocupação nazi de Paris indo para os EUA, fundou as Éditions de la Pléiade. Já em terras do Tio Sam, como Vitor Silva Tavares refere no prefácio à edição portuguesa, retomaria “a passada de editor de culto e interveniente nas convulsões ideológicas do meio-século”, fundando em Nova Iorque a Pantheon Books que, “ao publicar autores como Foucault, Sartre, Chomsky ou Medvedev, se guindou ao nível de maior prestígio entre as editoras americanas”. Neste caso, a maçã caiu bem aos pés da macieira e, depois de 28 anos como editor da Pantheon, obrigado a vendê-la à Random House, André fundou em 1990 The New Press, editora independente que dirigiu até à sua morte, em dezembro de 2013. Acompanhando todo o processo da concentração editorial, seus efeitos nefastos e o conjunto de transformações no meio editorial que ocorreram à medida que a teoria do mercado foi aplicada à disseminação da cultura, uma das noções que explora neste livro é a da “censura do mercado”.

Ele recorda como, “tradicionalmente, as ideias estavam isentas das habituais expetativas de lucro”, mas que o propósito de massificação que vigora hoje em todos os campos da atividade económica determinou uma limitação do alcance e diversidade no que toca à edição dos livros mais desafiantes. Assim, a democracia ideal que o mercado supostamente defenderia revelou-se mais um engodo ideológico e o tipo de ingenuidade a que só um liberal com demasiadas palas ainda se agarra. O que se torna evidente é que o “mercado livre de ideias”, que garante a possibilidade de “ideias de toda a espécie terem uma oportunidade de sair a público, de serem explicitadas e argumentadas até ao fim, e não de forma truncada”, está hoje de rastos.

Schiffrin sublinha o facto de, durante boa parte do séc. xx, o mercado de edição e venda de livros ter sido, no seu todo, visto como uma operação no limiar da rentabilidade, e esclarece que se “admitia, com frequência, que os livros que apresentassem novas abordagens e teorias diferentes fariam naturalmente perder dinheiro, logo à partida”. Este quadro – que permitiu que obras essenciais, nomeadamente no campo da não ficção, e muitas vezes dirigidas a um público minoritário, fossem apoiadas, publicadas e difundidas – tornou-se impossível e reduziu alguns géneros à inexpressão. Mas o impacto no campo da prosa de ficção não foi menos assinalável. “Era esperado que um romance de estreia perdesse dinheiro (e de muitos autores já se disse terem escrito muitos romances de estreia)”, nota Schiffrin, frisando que, “mesmo a longo prazo, o mercado não pode ser considerado um juiz adequado para o valor de uma ideia, como provam, de forma óbvia, as centenas ou até os milhares de livros que nunca fizeram dinheiro”. E esta importante margem de fracasso foi, ao longo da sua história, o que distinguiu o livro de outros meios de comunicação social e o dotou de um prestígio que justifica, nomeadamente, a exceção que vê ser-lhe aplicado, em Portugal, um IVA de 6%, em linha com uma série de outros bens essenciais.

Acontece que a própria mutação neste meio, com “a transferência dos poderes sobre o que é ou não publicado das mãos dos editores para as dos chamados conselhos editoriais, nos quais os gestores e os especialistas de marketing desempenham um papel fulcral”, para lá da eliminação dos “livros novos, estranhos loucos, intelectualmente inovadores ou experimentais” dos catálogos, por não garantirem lucros imediatos, tem um efeito reflexo na própria condição do livro. Hoje, dada a abundância de edições que correspondem a uma mera estratégia de lucro rápido à boleia de modas passageiras, caprichos do momento, aquilo que numa hora coroa um impulso e não passa, na seguinte, de lixo, o livro já se vê alvo de despudoradas e infelizes campanhas como a do Mercado do Livro no Porto, que até ao próximo dia 18, no Museu da Misericórdia da cidade, está a vender livros ao quilo e a partir de um euro. São gestos “inovadores” e talvez até bem-intencionados, mas cuja imbecilidade põe o dedo na ferida daquela que é a nova condição do livro: a de mais um supérfluo bem de consumo que, dada a resistência do suporte físico, se não é reciclado, fica por aí aos pontapés.

Outra notícia que se espalhou denunciando esta crise chegou de Ancara, a capital turca, onde foi aberta uma biblioteca pública cujos livros têm sido recolhidos pelos homens que trabalham nos serviços de recolha de lixo da cidade. Sensibilizados ao verem tantos livros deitados fora, tiveram primeiro a ideia de os salvar e pôr à disposição dos funcionários da câmara e das suas famílias mas, à medida que o projeto foi ganhando atenção e a coleção foi crescendo, decidiram-se antes por uma biblioteca aberta a todos.

As livrarias independentes não estão sujeitas atualmente apenas à pressão do turismo nos centros históricos das principais cidades portuguesas, que fez disparar os preços das rendas, ainda se debatem com a concorrência direta e desleal das cadeias de livrarias, muitas delas integradas nos grandes grupos económicos que concentraram a maioria das editoras portuguesas e que, em desrespeito até da lei que limita os descontos nos livros com menos de 18 meses, chegam a praticar preços mais baratos do que aqueles que oferecem às outras livrarias. Acresce ainda o problema da falta de músculo negocial dos pequenos livreiros quando comparado com o das cadeias de supermercados e das livrarias Bertrand ou da Fnac, num jogo em que nunca houve justiça.

Ao mesmo tempo, os editores independentes não têm escolha a não ser inflacionar os preços dos livros de forma a comportarem os descontos exigidos por estas grandes empresas, e os leitores menos atentos ficam convencidos de que estas livrarias os beneficiam com os seus descontos em cartão e outras promoções. É uma fabulosa impostura. Enquanto isto, agora que a Fnac celebra 20 anos em Portugal, é curioso notar que, nessas duas décadas, o tempo de vida de um livro nos escaparates passou de meses e até anos para semanas, o que leva os leitores a aguardar os saldos, desforrando-se nas feiras do livro e outras iniciativas que reajustam o preço dos livros. Tudo isto encolheu a janela de oportunidade das livrarias independentes, que já não são mais que uma estreita fenda neste degradante esquema.

Traçando um eficaz paralelo do setor livreiro com o que aconteceu no da panificação, Schiffrin refere no seu livro os resultados de um inquérito público que revelou o que aconteceu nos EUA quando duas gigantes nacionais vieram substituir as pequenas padarias que existiam em cada cidade. “As grandes empresas industriais ofereciam inicialmente o pão a preços mais baixos do que os praticados pelas padarias locais. Além disso, as pequenas mercearias foram encorajadas, através de maiores descontos, a atribuir mais espaço de exposição a este pão. No início, as diferenças de preço foram suficientemente atraentes para conduzir os pequenos produtores à bancarrota. Uma vez eliminada a concorrência, estas grandes empresas aumentaram os preços segundo um processo monopolista previsível, e os americanos tiveram de se satisfazer com pão embrulhado em plástico, com sabor a plástico, e que ainda é mais caro do que os pães que substituiu. Só várias décadas mais tarde é que começaram a aparecer nas grandes cidades padarias especializadas que vendem pães de excelente qualidade mas que são tão caros que só uma pequena minoria os pode consumir.”

Se tudo isto é óbvio, e é óbvio que os “livros novos, estranhos loucos, intelectualmente inovadores ou experimentais são publicados em tiragens pequenas ou médias”, tarefa que cumpre às editoras mais pequenas, como nota o prestigiado editor alemão Klaus Wagenbach, de cujo testemunho Schiffrin se socorre, e se o livro e o pão podem ser bens igualmente essenciais, para consumir um basta ter fome, ao passo que para criar um bom leitor é preciso instigar um apetite de natureza muito diversa e que, se perdido, pode levar gerações a recuperar.

Ora, como demonstra Schiffrin, não se pode deixar de perceber o que está a acontecer no comércio livreiro sem analisar o modo como isso decorre das mudanças que aconteceram no campo da edição. Assim, se as livrarias independentes são aquelas que se batem por um espaço de autonomia, procurando diferenciar-se, nomeadamente pela defesa dos públicos especializados, e cobrindo as apostas que só os pequenos editores estão em condições de fazer, não basta pensar que o futuro destas livrarias pode ser deixado ao espírito aventureiro de uns loucos que dedicam a sua vida a esta forma de ecologia que protege espécies literárias ameaçadas.

Um exemplo entre nós é Duarte Pereira, livreiro e editor da Snob, que tem alguns anos de experiência e quilómetros que davam já para umas voltas ao mundo, e conta ao i que encara hoje o ofício como um que o obriga a “andar com a casa às costas: estar um dia em Lisboa, outro em Guimarães, outro num ponto qualquer onde seja chamado para participar em feiras ou outro tipo de eventos ligados ao livro. É ser detetive umas quantas horas por dia, à procura do livro esgotado e muitas vezes impossível. É manter o contacto com os leitores através das redes sociais, é recomendar, aconselhar, manter a identidade de livreiro quando num espaço estanque de portas abertas já não consegue. Tem de haver um grande entendimento e consciência da situação para se responder ao chamamento, estar disponível para aceitar que o mercado está em transformação se queremos manter este ofício”.

Este risco e empenho, que se confunde mais com um modo de ativismo e que passou inteiramente para o lado de uma mão-cheia de livreiros, deve obrigar hoje os leitores minimamente conscientes a apoiá-los, a não se ficarem atrás. Como Vitor Silva Tavares refere no prefácio do livro que temos citado, “se a montante e a jusante do fabrico és tu o ‘mercado’, como te fazem, então está na tua mão lixá-lo – ou, em mais fina terminologia sociológica, subvertê-lo. Escolhe e torna a escolher, encontra esconsos, busca luminescências (quase) clandestinas, contribui, pela inércia, para a cubicagem dos sarcófagos de invendidos, nega a lógica vampiresca dos conglomerados editoriais. Não embarques quando ouves ou lês que eles garantem empregos e salários e o equilíbrio da balança de pagamentos e o produto interno bruto… deste embrutecimento programado. Mete na cabeça que a legião de acionistas ‘do setor’ não é de fiar”.