Rosa, Clarice e Caru. Três mulheres de três gerações num conflito que é o centro de “Como Nossos Pais”, o último filme de Laís Bodanzky, que estreia esta semana nas salas portuguesas. Na passagem da realizadora brasileira por Portugal, a propósito do FESTin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, que exibiu o seu filme na sessão de abertura, encontrámo-nos com ela. Para uma conversa sobre Rosa (Maria Ribeiro), Clarice (Clarisse Abujamra) e Caru (Antonia Baudouin) e o que é política para cada uma delas. E sobre a mulher e o seu lugar – “existe uma opressão de género em que você acha que não tem nem o direito de ocupar esse espaço”, diz Bodanzky sobre a profissão de realizadora – mas também sobre o Brasil e o lugar do cinema e da arte num momento em que parecem ameaçados por um “movimento retrógrado muito forte”.
“Como Nossos Pais” explora temáticas que temos visto recorrentemente retratadas pelo cinema brasileiro: a classe média, a família, o lugar da mulher. Por exemplo, “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, ou “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert. Vem de onde este movimento?
É natural que a gente fale do nosso país dessa forma. O que acontece muitas vezes é que a imagem do Brasil para fora tem um viés que não é mentira, é verdade, de violência, de miséria, de problemas sociais mais radicais, e não se fala tanto na questão da classe média, que é muito significativa, até do ponto de vista económico. A classe média aumentou bastante no governo do PT [Partilho dos Trabalhadores, de Lula da Silva e Dilma Rousseff] e nós, artistas, falamos de muita coisa, mas também falamos do quotidiano dessa classe média em filmes que conseguiram destaque em festivais e que foram exportados para o mundo inteiro. Em debates em que participo fora do Brasil as pessoas perguntam: “Existe classe média no Brasil?” É claro que existe. “Mas é pouco, não é? É pequena…” Não é pequena. Mas acho que o mundo já está passando a ver o Brasil de uma forma diferente.
Embora não diretamente, porque o que temos aqui é o retrato de três gerações de mulheres em conflito, acaba por ser também sobre política este filme.
Não é sobre questões políticas, mas indiretamente é. A mãe da Rosa é uma mulher que se envolveu com a política estudantil nos anos 70, dessa geração que foi transgressora, que lutou pela liberdade, que acreditava num mundo mais democrático. Essa geração chegou no poder e o que hoje a gente vê é que, sim, [algumas] coisas melhoraram, mas que novos problemas surgiram. Que [essa geração] também não foi a solução, então vivemos um momento de frustração. A esquerda no Brasil está se perguntando onde errou e não conseguiu ainda achar a resposta. E o filme mostra um pouco essa geração que, numa idade já mais avançada, se pergunta como depois de uma vida inteira chegou ao poder e aí… Essa mãe, no final da vida dela, também faz esse questionamento. O que fiz da minha vida? Quem sou eu? E o que posso passar para a minha filha?
A filha, Rosa, com quem está constantemente em confronto, e num plano ideológico também.
A filha faz questão de dizer que não se interessa por política. Mas será que ela não se interessa por política, ou que não se interessa por política com o viés que a mãe trouxe? Na hora em que a Rosa passa a tomar atitudes revolucionárias enquanto mulher, no discurso e botando o discurso em prática, tomando a consciência de que a mulher não tem espaço e que vive em opressão, isso também é política. Uma nova forma de fazer política. Então ela não é menos do que a mãe. É só diferente.
Construiu essa personagem de forma a ser uma representação da mulher brasileira a chegar aos 40 anos?
Teve até uma brincadeira nas redes sociais, #EuSouRosa, porque há uma identificação. Claro que ela é uma personagem única, específica, mas ao mesmo tempo é universal – e percebi que não só no Brasil, fora também. No ano passado quando o filme passou em Berlim, na primeira exibição, a minha surpresa foi justamente essa. Perceber que não estava falando só da mulher brasileira. É brasileira mas é alemã, é francesa, é espanhola também.
Da mesma maneira que ela própria se sente às tantas uma espécie de Nora da “Casa de Bonecas”, de Ibsen.
Essa peça continua completamente atual. E a gente vê como avançou mas ainda não avançou tudo. Continua a existir uma opressão na sociedade para colocar a mulher dentro de casa: “Esse lugar é o seu, o seu dever é esse e fique feliz por ter um marido, uma família.” A sociedade impõe esse padrão de felicidade a que a mulher acha que tem que corresponder. Só que ela não está feliz. A Nora finge que está feliz e, para poder fingir que está feliz, se anula, se faz de boba, de infantil. Para não questionar. Porque, a partir do momento em que questiona, ela tem que sair de casa. Por isso dá tanto medo questionar. A Rosa vive uma situação extrema de infelicidade, em que ou questiona ou a vida perde o sentido. E ela questiona e enfrenta. Acho a Rosa revolucionária, mais do que a mãe.
Nesse sentido, passa a ser, sim.
O que a mãe tem é um discurso revolucionário. Na prática, o que ela faz com a filha é falar “fique em casa cuidando dos filhos para o seu marido poder ir cuidar do mundo”. Quem disse que o marido dela vai salvar o mundo? O trabalho dele é nobre, mas o dela também. Como dramaturga, também ela poderia mudar o mundo. E por que tem de deixar de sonhar para o marido dela sonhar?
Em que ponto vê o Brasil em comparação com o resto do mundo neste plano? Qual é o lugar da mulher na sociedade brasileira em 2018?
Muito próximo, muito parecido. Posso fazer uma comparação na área do cinema, porque na indústria cinematográfica as mulheres estão muito organizadas: no Brasil temos poucas mulheres na direção [realização] e no roteiro [argumento], mas quando lancei o filme na Espanha e participei num debate de mulheres em que elas trouxeram números percebi que lá é pior ainda.
O mesmo se passa em Portugal.
Estou percebendo que, se lá está difícil, aqui está pior! E é porque elas não querem dirigir? Não. É porque é difícil mesmo, porque existe uma opressão de género em que você acha que não tem nem o direito de ocupar esse espaço. E isso que acontece no cinema acontece noutras áreas também. O filme foi vendido para alguns países e normalmente é uma mulher que o compra. Há um movimento geral de mulheres para mudar o status quo porque a gente já entendeu que ou somos nós a fazê-lo ou a mudança não vai cair do céu. O oprimido é quem tem que reivindicar espaço. É engraçado como a mulher no planeta se comporta como minoria. Porquê, se [a humanidade] é metade homem, metade mulher? Pode ter muitas vezes um discurso bonito, mas traduza isso na prática, vá atrás dos números: quantas mulheres são presidentes de companhia ou ocupam espaços de liderança, lugares de poder na política? Quase nenhuma.
Ao contrário de outros países, como Portugal, o Brasil teve já uma presidente.
Que sofreu um impeachment. Foi exatamente quando a gente teve uma mulher que aquele congresso realmente retrógrado e conservador tirou ela de lá. E porque não está presa se o que fez, que nunca se comprovou, é tão grave?
Acredita que foi essa a motivação para o impeachment de Dilma?
Tenho a certeza absoluta que teve a ver com o facto de ser uma mulher. É muito mais fácil massacrar uma mulher do que um homem. As fofocas diziam: “Ah, ela não sabe governar”, “ela é muito brava” ou então “não tem equipa porque é muito mole”… Ou é brava ou é mole. Quantos estadistas homens são duros sem que isso seja um tema?
Este filme estreou em Berlim no ano passado, na edição em que circulou uma carta dos realizadores brasileiros em que se mostravam preocupados com o futuro do cinema brasileiro depois da chegada de Temer ao poder. Como é que os realizadores e os artistas brasileiros em geral estão a atravessar este período, sobretudo com tudo o que tem acontecido desde então?
Está todo mundo assustado, em estado de alerta, até porque o Brasil é um dos países mais fortes do ponto de vista da discussão [das questões] de género. No Festival de Berlim deste ano, os dois principais prémios Teddy, de ficção e documentário, foram brasileiros. Não é à toa. É porque temos uma produção artística que está a aprofundar o tema, talvez mais do que noutros países. É muito bonito o que está acontecendo. Só que com essa mesma força está vindo um movimento retrógrado muito forte.
Com a situação do Rio de Janeiro, por exemplo.
Aquele prefeito do Rio de Janeiro… meu Deus. Isso sim é resultado da saída da presidenta [Dilma]. Por isso acho que é golpe. Porque começa a ter já movimentos nitidamente de opressão e de desrespeito pelo diferente, pelas minorias, pela diversidade. E estão vindo com força. Preocupa-me que não seja um movimento só no Brasil, a gente vê isso com Trump nos EUA. Este ambiente lembra um pouco o pré-nazismo. De outra forma, porque é um outro momento histórico, mas tem um cheiro estranho.