Filipe Anacoreta Correia. “Quando o CDS diz que aspira a liderar um governo, poderá não ser nas próximas eleições”

O deputado defende o projeto de Assunção Cristas, mas prefere acalmar as euforias porque a história do CDS aconselha alguma cautela

Porque se falou tanto na democracia cristã no congresso do CDS?

O que me parece é que houve um debate, acompanhado de vários artigos de opinião de várias sensibilidades. Para mim, a questão foi mal colocada de início. Houve quem opusesse a nossa ideologia ao pragmatismo, o que não é correto. E houve também quem acentuasse a crítica no facto de Assunção Cristas não ter qualquer referência escrita à democracia-cristã na sua moção ao congresso. O problema é que quando colocamos o foco nas palavras que são – ou não – ditas, depois de serem ditas, parece que o problema se resolve. Não é bem assim. Neste partido sempre se falou muitas vezes na democracia-cristã e agora não é mais nem menos democrata-cristão do que era antes. Ou fazemos uma avaliação do caminho percorrido, das propostas feitas e do discurso político que se assume, ou fazemos uma avaliação em função de estarmos sempre a proclamar isto ou aquilo. A primeira parece-me mais positiva. Provavelmente nem todos no CDS são tão democratas-cristãos quanto se disse e repetiu, como o CDS de hoje não é tão pouco democrata-cristão quanto alguns acusam. Se olharmos para as medidas propostas pelo partido, a matriz está lá. A preocupação com os temas sociais está lá: a natalidade, a família, o envelhecimento ativo. Pode haver, por vezes, a tentação de falar muito, o que só instrumentaliza o conceito em si.

Portanto, usou-se a democracia-cristã de maneira errada nessa discussão?

Sim. Por vezes, usa-se mais um determinado posicionamento político por este ser proveitoso do ponto de vista eleitoral do que por crença genuína. Mas as pessoas sentem isso. Com Assunção Cristas, esse fenómeno é mínimo, mas no passado, eu sentia isso: que o CDS falava da democracia-cristã por uma questão de oportunismo, por uma questão de oportunidade eleitoral. Chegávamos aos congressos e havia uma preocupação de distanciamento a essa referência identitária. Chegávamos às eleições e sentia-se uma pressão eleitoral para responder a esse eleitorado. Esse oportunismo nem sempre era bem aceite.

Ainda há pressão eleitoral para ser democrata cristão?

Hoje em dia, há duas coisas a dizer sobre isso. Em primeiro lugar, o facto de haver uma menor pressão sobre o voto útil, pode aliviar isso.

Porquê?

Porque muita gente era pressionada a votar no PSD para “se ganhar as eleições”, apesar de muitas vezes se identificarem mais com o trajeto político do CDS. O eleitorado mais fiel era aquele que tradicionalmente se identificava mais com a matriz fundadora do CDS, esse permanecia e resistia à pressão do voto útil. Creio que isso se poderá ter alterado. Mas também creio que as pessoas gostam de ter balizas e perceber onde estamos. As referências tranquilizam. E também é por isso que essa pertença foi tantas vezes referida neste congresso, não enfraquecendo a mensagem que se queria transmitir. Fortaleceu.

Faz, nesse sentido, uma avaliação positiva do congresso?

É claro. Correu muito bem.

Colocar a ideologia e o pragmatismo em polos errados é, então, errado?

Como eu o vejo, é, E vejo-o um pouco como a Assunção Cristas: uma pessoa cujo pragmatismo é visto como uma atitude. Uma atitude de querer colocar aquilo que somos e o que pensamos de forma bem sucedida. Isso não a põe em contraste com o pensamento do partido. É antes uma forma mais eficiente de trabalhar esse pensamento. Colocar a ideologia em oposição ao pragmatismo é assumir outra ideologia que não a nossa. O pragmatismo como ideologia bebe as raízes e o pensamento político de outras escolas e isso, sim, seria um erro: não aceito todo o tipo de pragmatismo nem à custa daquilo que sou ou penso sobre o país. É preciso recusar alguns pragmatismos, sobretudo se estes forem ideológicos. Admito que não era essa a vontade de quem trouxe esse debate a público, mas a consequência foi essa. Depois do congresso, creio que o assunto está ultrapassado. Na verdade, não há nem deve haver uma oposição entre uma atitude pragmática e o nosso pensamento matricial.

Foi um congresso mais de consagração ou de pacificação?

De consagração, como é natural. Nós viemos do mandato de um presidente muito marcante, muito impactante. Praticamente esteve na origem de toda a classe dirigente do partido. O partido identificava-se muito com o presidente Paulo Portas. A sua saída era acompanhada de enormes dúvidas e incertezas. Se recuarmos dois anos, havia muita gente a dizer que o partido ia desaparecer, que não se ia aguentar. E a verdade é que dois anos depois não só se aguentou como está mais forte, com perspetivas de maior proximidade em relação aos eleitores, está mais focado em dar respostas a problemas, está com outra ambição. É natural que se o primeiro congresso foi um congresso de mudança – mas de incerteza e insegurança –, que este tenha sido um congresso de afirmação. E isso não é coisa pouca.

Em que medida?

Se nós olharmos para a história do CDS, todas as mudanças de líder foram acompanhadas de grandes roturas. Foram processos muito difíceis e dolorosos, que levaram à saída de militantes, etc.. Os embates eleitorais internos no partido sempre foram difíceis. Agora, é a primeira vez que temos uma liderança que assegura a continuidade, porque nada destes dois anos foi feito contra o processo anterior e a maior parte das pessoas que se identificava com Paulo Portas continua a identificar-se com Assunção Cristas.

Acha isso?

A prova é olhar para a classe dirigente.

Mas há uma diferença entre a manutenção da classe dirigente e haver uma identificação com quem sucedeu a Paulo Portas.

A identificação com as personalidades é um tema complexo, talvez nem muito desejável nas lideranças partidárias. Mas a identificação com o processo político ocorre, as pessoas estão identificadas com o processo político que Assunção Cristas definiu. Isso foi assegurado através de uma continuidade e, ao mesmo tempo, com uma aspiração de crescimento. A própria figura de Assunção Cristas – todo o seu percurso anterior ao partido, vinda da universidade – consegue assegurar uma continuidade e, ao mesmo tempo, uma aspiração de mudança que ocorre de forma natural e tranquila. Também vejo o facto de a Assunção Cristas contar com pessoas que antes criticavam Paulo Portas, como é o meu caso, como um sinal dessa abertura. Há uma capacidade de somar mais do que se subtrai.

Qual foi o seu primeiro pensamento quando soube que Portas iria abandonar a liderança do partido?

Recebi essa notícia como uma surpresa esperada. Eu não sabia da decisão, mas intuía que essa surpresa era esperada – e não só por mim. Havia alguns sinais no partido de que havia um ciclo a aproximar-se do fim. Eu senti claramente que era uma grande oportunidade e um grande risco. O partido estava muito identificado com Portas. Percebia-se que um partido com a dimensão do CDS necessitava de não fazer uma rotura, potenciar muitas coisas que a sua liderança tinha e, ao mesmo tempo, ter uma ambição de algo novo e mais aberto. No fundo, é isso que tem vindo a acontecer.

Falou em abertura. Essa abertura proporciona menos fricções internas?

Eu creio que sim. De uma forma geral, sim. Eu vejo o meu envolvimento como um sinal disso. Mas esse tipo de sinal não é exclusivo, perspetiva-se em todas as realidades do partido.

Por exemplo?

Muitas pessoas que estiveram comigo numa visão mais crítica do trajeto de Paulo Portas, hoje em dia, estão totalmente comprometidas em projetos de âmbito concelhio e distrital. O tema da abertura é um tema sensível, que eu estimo muito. Não posso achar que ele esteja esgotado. Esta abertura tem de demonstrar-se quotidianamente. É esse o meu desejo. E vejo sinais nesse sentido, de maior amplitude e abertura, mas acredito que esse é um processo continuo, que não está minimamente esgotado.

O que tem Assunção que Portas não tinha, concretamente?

Tem um conjunto de coisas bem visíveis. Maior abertura, tanto na capacidade de trazer e fazer pontes com a sociedade civil, que é algo que tem sido feito, como na capacidade de integrar várias sensibilidades distintas dentro do partido. Por outro lado, o CDS de hoje tem uma proximidade a determinados parceiros da concertação social que antes seria mais difícil conseguir. Eu agora estou mais envolvido do que estava antes, mas essa é a minha leitura. Na sociedade civil, o Ouvir Lisboa, nas autárquicas, e o Ouvir Portugal, agora, são outra prova de abertura. Depois do congresso, recebi muitas mensagens a dizer isso: que o CDS vive um tempo fresco e que as pessoas querem contribuir para isso. O partido é hoje mais chamativo, mais abrangente, com outro tipo de credibilidade. Tudo isso comporta maior ambição. Sem querer falar de passado, os resultados falam por si. Há um caminho de afirmação.

A ideia de quase se assumir candidata a primeira-ministra não coloca a fasquia demasiadamente elevada para ficar caso não cumpra?

O CDS colocou a questão como devia. Nós hoje temos a noção de que para se ser uma alternativa ao PS precisamos de 116 deputados. E o CDS vai empenhar-se ao máximo para contribuir para esses 116 deputados e naturalmente aspirará a que esse contributo seja crescente. Mas também acho que isso deve ser feito com prudência e com os pés assentes na terra. Pode haver algum discurso eufórico distanciado da realidade. E até a história do CDS nos aconselha a alguma cautela. Se olharmos, por exemplo, para o tempo de maior euforia que tivemos desde a democracia, que foi o tempo de Francisco Lucas Pires, foi nesse tempo que fomos de 42 deputados para 30 e depois para 22. O momento de grande euforia deu depois em algo que não foi de encontro às expectativas criadas. Hoje, o ciclo pode ser inverso. Vimos de uma dimensão que está manifestamente aquém da qualidade e da competência do partido. O CDS merece uma dimensão superior. Assunção Cristas e a forma como tem liderado a oposição ao governo nos permitem pensar que poderemos ter um grande crescimento, mas isso deve ser feito com os pés assentes na terra e com noção de onde estamos. Quando o CDS diz que aspira a liderar um governo, poderá não ser já nas próximas eleições. Serão umas eleições diretas à direita. Com o afastamento do voto útil, o que nós temos já não é a pressão para votar no primeiro, mas para votar no melhor dos dois. E o eleitor de direita, que não quer uma solução de governo com o PS e encostada à esquerda, vai poder escolher quem considera o melhor primeiro-ministro. Naturalmente que nós, no CDS, consideramos que o melhor primeiro-ministro é a nossa candidata: a Assunção Cristas.

Porquê?

É olhar para as pessoas, para as equipas, para a capacidade de resposta. O CDS é melhor. Nos mais variados temas, o CDS tem um foco acertado e empenhado em resolver os problemas do país. É um partido que diz “presente”, que procura dar respostas. 

Falou-me da manutenção dos vários quadros dirigentes do “portismo”. Como é para si, que foi opositor a essa linha, trabalhar hoje com ela?

Foi um desafio. Eu não tenho um trajeto nem uma história de cumplicidades acumuladas como tem a maior parte das pessoas aqui. De uma forma geral, tenho sido bastante bem integrado. Temos um bom relacionamento. A minha perspetiva de contributo tem a ver com aquilo que eu sou. Em cada momento não deixo de dizer o que penso, mesmo que muitas vezes possa ser crítico ou distante dessa cumplicidade que falei. Cada um não prescindir daquilo que é. Isso é uma mais valia. Eu também reconheço hoje que quando estava de fora tinha ideias que, depois, a realidade não veio a confirmar. Tenho encontrado pessoas com um percurso de grande valor. É na capacidade que temos de fazer pontes e de sermos críticos até diante do nosso passado que o partido cresce. Isso acontece com reciprocidade. Da minha parte, acontece seguramente.