As inspeções feitas em 2013 à adjunta do procurador Orlando Figueira e ao magistrado que ficou com os seus processos quando aquele decidiu sair do Departamento Central de Investigação e Ação Penal para ir para o privado não revelam qualquer anomalia na forma como foram arquivados os inquéritos que visavam Manuel Vicente, ex-vice-presidente de Angola. Bem pelo contrário: Teresa Sanchez foi avaliada com a nota ‘Muito Bom’ e Paulo Gonçalves com ‘Bom com Distinção’.
Os documentos a que o SOL teve acesso mostram ainda algumas guerras internas e a forma como funciona o departamento do Ministério Público que investiga a criminalidade mais complexa.
No caso Fizz, Orlando Figueira foi acusado por, enquanto procurador do DCIAP, ter acelerado e arquivado inquéritos que visavam o ex-governante angolano em troca de subornos que ascendem aos 760 mil euros. Mas existem dois detalhes que a defesa tem dito desde que o julgamento começou e que encontram sustento em documentação que conta dos autos: em primeiro lugar, os arquivamentos não dependiam só de Orlando Figueira, uma vez que os assinou em conjunto com a procuradora Teresa Sanchez; em segundo lugar, um desses inquéritos foi reaberto a posteriori pelo procurador que substituiu Figueira e teve o mesmo desfecho.
As auditorias do inspetor do Conselho Superior do Ministério Público Francisco Miller Mendes a estes dois magistrados passaram a pente fino os dois arquivamentos que estão no centro do processo Fizz, não tendo os mesmos merecido reparos à forma como foram instruídos.
‘Muito bom’ para procuradora que assinou despacho suspeito
Quanto a Teresa Sanchez, é referido que se trata de uma de uma magistrada de «estirpe, responsável e orgulhosa da sua pertença a uma magistratura à qual acima de tudo se encontra devotada e que acima de tudo soube dignificar e prestigiar».
Dos processos que tratou com Orlando Figueira, apenas há reparos do inspetor ao inquérito 244/11, que envolve a sociedade Grunberg e o banqueiro Álvaro Sobrinho, mas em causa está uma resposta a um recurso que foi colocado pelo arguido e que, apesar de «esforçada», apresenta-se «pouco consistente».
Quanto à investigação a Manuel Vicente pela compra de um apartamento no Estoril-Sol (5/12), como ao inquérito de onde este nasceu e em que estavam a ser investigadas muitas individualidades pela compra de casas naquele condomínio (246/11), também não são feitos quaisquer reparos.
E, segundo a inspeção, a sua relação profissional com Orlando Figueira traduziu-se numa partilha de trabalho, concluindo assim que não tinha uma autonomia muito limitada, contrariamente ao que aconteceu posteriormente, quando passou a assessorar Paulo Gonçalves, que «assumia» a condução das investigações.
As conclusões também se basearam nas informações pedidas à Procuradoria-Geral da República, à antiga diretora do DCIAP Cândida Almeida e ainda ao testemunho de Orlando Figueira. Todos muito elogiosos do trabalho de Teresa Sanchez. Tanto que o inspetor refere que, da parte de Figueira, «tamanho é o calor da adjetivação, espraiada em excelentes referências como […] a celeridade, a eficácia, o empenho, a argúcia, a perspicácia, as excecionais capacidades técnico-jurídicas e intelectuais». E a informação de Cândida Almeida vai no mesmo sentido, tendo o inspetor até sublinhado que era «de não menor tom».
A magistrada, que já foi depor a tribunal enquanto testemunha, disse que o que Orlando Figueira fez nos processos está bem feito, ainda que tenha dito que teria feito mais diligências antes de arquivar a investigação ao apartamento de Manuel Vicente e que não concordava com a informação recortada com x-ato do apenso 1 do processo mãe, ou seja, o 246/11.
Paulo Gonçalves, o procurador que reabriu e voltou a arquivar
Teresa Sanchez assinou os despachos de arquivamento que estão sob suspeita e teve a nota mais alta que poderia ter. E Paulo Gonçalves – o magistrado que herdou as investigações de Angola que Orlando Figueira tinha em mãos e que reabriu e voltou a arquivar um dos inquéritos centrais da Operação Fizz – também viu a inspeção atribuir-lhe boa nota à forma como instruiu os inquéritos. Inclusivamente, o arquivamento do caso que Figueira tinha arquivado e que o MP refere na acusação que foi de forma a beneficiar Manuel Vicente e com o propósito de receber ‘luvas’.
Em causa está o inquérito 149/11 (sobre a venda de 24% do BES Angola à sociedade Portmill) que depois de arquivado por Orlando Figueira acabou por ser reaberto por Paulo Gonçalves, que, tal como Orlando Figueira e apesar de umas diligências adicionais, não conseguiu chegar aos responsáveis pela sociedade.
E mesmo quanto ao inquérito que continuou em curso a visar várias personalidades que compraram apartamentos no Estoril-Sol Residence (246/11) – de onde nasceu o processo autónomo de Manuel Vicente que acabou arquivado ainda por Figueira (5/12) – é descrito que Paulo Gonçalves fez o mesmo com os restantes suspeitos que Figueira havia feito com Manuel Vicente (ainda que não tenha autonomizado cada um deles em inquéritos à parte).
«Inspecionado e assessora mandam notificar para justificarem as aquisições e meios de financiamento, sendo que os que responderam vieram de novo a ser chamados para comprovarem documentalmente as suas afirmações», refere-se no relatório da inspeção.
No caso de Manuel Vicente, Orlando Figueira recebeu do então advogado do Estado angolano e arguido no caso Fizz, Paulo Blanco, as declarações de rendimento de Manuel Vicente e pediu o registo do criminal e se pendiam investigações a visá-lo em Angola. A acusação defende que há diligências, como o follow the money [seguir o rasto do dinheiro], por fazer.
Guerras no DCIAP espelhadas na inspeção de Gonçalves
O assunto das guerras no departamento do MP que investiga a criminalidade mais complexa já foi abordado em julgamento.
A inspeção feita a Paulo Gonçalves vem comprovar o clima de tensão, numa altura em que tinham passado ainda poucos meses da entrada do atual diretor do DCIAP, o procurador Amadeu Guerra.
A informação prestada por Amadeu Guerra dava conta de que Paulo Gonçalves tem capacidade «para o exercício da profissão», mas também disse ter a «sensação (não mais do que isso) de que o dr. Paulo Gonçaves podia das ainda um pouco mais (melhorando a eficácia)».
Uma posição diferente da que foi prestada pela ex-diretora que disse tratar-se de um «magistrado de mérito». E adiantava que o sabia porque «lia e registava todos os despachos finais de acusação ou abstenção, seus e dos demais colegas».
Paulo Gonçalves, chamado a dar a sua posição, arrasou o que disse o seu diretor, uma postura que valeu inclusivamente críticas do inspetor.
Gonçalves disse que apesar de estar há pouco tempo, Amadeu Guerra «sentiu-se habilitado a emitir ‘sensações’ sobre o empenho e dedicação de dois anos e meio do [seu] trabalho especializado na investigação da criminalidade económico-financeira». E foi ainda mais longe, ao afirmar que «apesar da falta de conteúdo substantivo, as referidas ‘sensações’ são de uma injustiça e leviandade arrasadoras». Mais: acusou o diretor de ter proferido declarações «desleais, desmotivadoras e pela insinuação vaga destruidoras, como todas perfídias, de uma reputação construída em 26 anos de carreira».
Diz também não perceber como é que o atual diretor poderia querer que com a mudança de direção os processos fossem mais céleres, nomeadamente os que visam cidadãos angolanos. «já que o magistrado age segundo critérios de justiça penal constitucional equitativa e célere».
E lembrou a saída de alguns magistrados, dos quais herdou inquéritos, como é o caso dos de Orlando Figueira, como um acontecimento de impacto negativo.
O inspetor referiu-se a esta posição como sendo um «destempero» ou um «exagero»: «Uma peça que, sem prejuízo do seu valor informativo, emerge norteada pela crispação, pelo ataque inconsequente e até pela falta de respeito».