Hat-trick – eis algo que nos entra pela casa dentro, revolve-se-nos nos intrincados labirintos dos ouvidos e vai ficando sem uma explicação concreta, irreversível.
Como se costuma dizer, em relação ao hat-trick, a doutrina divide-se.
Discuta-se o que se quiser em redor da malfadada expressão inglesa, mas se há algo absolutamente indiscutível é que ela nasceu há mais de cem anos e, na sua essência, refere-se a qualquer tipo de golpe de prestidigitação que envolva um… chapéu.
A partir daí, surgiu o vício de uma procura obsessiva da pormenorização que levou a todo o tipo de questiúnculas. Questiúnculas de tal ordem que são capazes de pôr um grupo unido de compinchas de candeias às avessas só por haver alguém que insista na necessidade de os três golos marcados pelo ponta-de- -lança X frente à equipa Y serem consecutivos para podermos, então, estar perante um autêntico e genuíno… hat- -trick. Enfim…
Ora bem, esta coisa do hat-trick também não tem importância suficiente para que em redor dela se escrevam tratados e compêndios. Mas, apesar disso, um nosso confrade, Nick Harris, do “The Times” de Londres, especialista na dissecação de expressões do inglês vernáculo transpostas para o vocabulário desportivo, descobriu que já nos gloriosos idos de 1886, o cronista do “Daily Telegraph” na Câmara dos Comuns desarrincava uma prosa que, referindo-se a um ilustre parlamentar da época, terminava assim: “He may soon acquire the hat-trick and other ways of securing a place.”
Eu explico! Eu explico!
Ao que parece, os membros da dita câmara tinham o hábito de deixar os seus chapéus pousados nas cadeiras de forma a reservarem os lugares. Como se vê, hat-tricks que não exigiam nem três cadeiras nem três chapéus, e muito menos… consecutivos. Adiante.
Desportivamente
O bom do Nick Harris deitou-se à obra de saber ao certo quando é que o terrível hat-trick passou a fazer parte da terminologia desportiva. E estabeleceu a segunda metade do séc. xix como data mais provável, parecendo claro que a porta de entrada se abriu por via do críquete, jogo que para nós, portugueses, será ainda mais requintadamente ínvio do que a expressão à qual deu albergue.
Ora bem, ao que parece, um jogador de críquete que conseguisse fazer passar três bolas consecutivas por debaixo daquela tripeça a que chamam wicket tinha direito a um chapéu ou a um boné novinho em folha pago pelo clube.
Pode dizer-se que aqui se acrescenta um ponto a favor dos que defendem a teoria dos golos sucessivos. Mas calma! Nada de precipitações.
Observe-se a totalidade das divisões da doutrina: o primeiro registo de uso do termo numa publicação desportiva data de 1877, no “Cricketers’ Companion”, onde se conta a história de um jogador que cometeu a proeza de fazer seis wickets com sete bolas: “Thus performing the hat-trick sucessfully.” Ah! Cumprindo com sucesso um hat-trick. Ou seja, como se vê, o truque expandiu-se. Seis pontos não eram, como poderia pensar-se, dois hat–tricks, mas apenas um. E o herói, pelos vistos, só teve direito a… um chapéu.
Chapéus
Vamos recuar ainda um pouco mais no tempo. Há quem defenda que o uso do termo hat-trick em matéria desportiva se ramifica com a invenção, em 1850, do mais tarde famoso bowler, o chapéu de coco, por um chapeleiro de Londres, mas não consta que o chapéu atribuído como prémio por feitos desportivos tivesse um género específico.
Aliás, embora a razão nunca tenha sido devidamente explicada, o costume de se ofertarem chapéus como recompensa já existia nos tempos do Império Romano, quando os escravos libertados recebiam uma espécie de boina com a qual se identificavam como homens livres. Hoje em dia, os futebolistas ingleses continuam a receber um chapéu (cap) por cada vez que são chamados à seleção. De tal forma que as internacionalizações são contabilizadas em… caps. Em chapéus, portanto.
Nos tempos modernos inventaram-se diversos hat-tricks. Uma publicação inglesa entrou no exagero do absurdo. Veja-se: 3 golos num jogo (hat-trick); 3 golos consecutivos num jogo (hat-trick natural); 3 golos em 45 minutos (super hat-trick); 3 golos na primeira parte (hiper hat-trick). E por aí fora até ao hat-trick perfeito: um golo com o pé esquerdo, outro com o direito e ainda outro de cabeça.
Como se vê, a discussão dá pano para mangas. E por mais que se rebusque nas raízes da expressão, nada nela leva a crer que se aplique a três golos consecutivos ou, com má vontade, sequer a três golos. Hat-trick é um truque. O truque do chapéu que entrou no futebol por via do críquete.