O Narcisismo das Pequenas Diferenças. É Pauliana a fazer tremer São Miguel

Três viagens e um ano depois, Pauliana Valente Pimentel inaugura amanhã em Ponta Delgada o seu mais recente trabalho. Vinte e três fotografias que darão réplicas na certa. Nada de errado nisso, que a quinta edição do Tremor já começou e vai até domingo

De Rabo de Peixe-mar a Rabo de Peixe-terra vai uma distância maior do que parece. Mas Pauliana Valente Pimentel esteve num e esteve noutro para daí partir para a ilha inteira. Três viagens, a primeira há um ano, precisamente. Início em Rabo de Peixe, junto ao mar, onde se fazia a abertura do Tremor, que já ontem regressou a São Miguel, que há de tremer ainda por quatro dias. E não é previsão meteorológica, é certeza isto. Tão exata como o epicentro do fenómeno em mais este início de primavera: a Galeria Fonseca Macedo, em Ponta Delgada, onde está já pronta para inaugurar amanhã a mais recente exposição de Pauliana, “O Narcisismo das Pequenas Diferenças”, em que retoma um tema que vem explorando ao longo dos anos – a juventude – desta vez no contexto açoriano. 

Epicentro aqui porque nos poucos metros quadrados desta galeria do centro de Ponta Delgada caberão 23 fotografias de 90x73cm, espaçamento quase zero, para pobres ao lado de ricos, rapazes que querem ser raparigas e que a Deus agradecem em tatuagens por nunca os (as) ter deixado ao lado de meninas em vestido de debutantes, pescadores-bailarinos ao lado de meninas loiras a passear éguas brancas. Também os miúdos da cidade que estudam Artes para quem cores só mesmo cor de rosa e azul. Miúdos que aqui não se demoram, que já aí virá o dia em que se fazem as malas para o Continente. 

Isto quando se pode. Quando não se nasceu na parte da ilha em que antes disso vem a idade de ter filhos. A mesma em que as meninas vão ao mar vestidas para depois secarem ao sol, em que cafés são lugar de homens e onde só homens se sentarão – mesmo que o assunto seja só uma fotografia. O lugar onde Pauliana foi dar com Nina que já foi Cíntia e antes disso teve um nome de rapaz que não importa. Importa sim contar como correu a abrir-lhe a porta de casa, e correu de novo à procura do “melhor top” para as fotografias. “Para mim era muito importante este confronto, colocá-los lado a lado, de forma igual. Tentei tirar o lado melhor de todos eles e quis expô-los assim, com as mesmas dimensões, de forma intercalada também com paisagens, com símbolos do que é isto da juventude, símbolos religiosos, de classe, da questão insular”, explica-nos ainda em Lisboa, antes de partir para os Açores, a artista que na inauguração faz questão de ter todos estes jovens e as suas famílias presentes, para um tremor de terra social, político, numa ilha que descobrindo de pequenas ilhas.

“Como Rabo de Peixe é uma ilha dentro da ilha, também as pessoas que vêm das famílias das quais toda a gente sabe o nome – nos Açores toda a gente pergunta ‘de que família é que és?’. Nunca conheci nenhuma sociedade com classes tão estratificadas, que não se misturam”, conta sobre o que foi descobrindo nas viagens em que fez esta residência, numa parceria entre os festivais Tremor e Walk&Talk e a Galeria Fonseca Macedo. 

“Convidei-os todos para irem à inauguração, e faço mesmo questão que estejam lá, apesar de não saberem exatamente o que vão encontrar. Sabem só que é um trabalho sobre a juventude de São Miguel”, recorda sobre como se foi apresentado a uma família e a outra e a outra. Dos dois extremos mas também do meio. “Procuro sempre um lado [de intervenção] social nos meus trabalhos e o que quero com este trabalho é criar um diálogo. Aqui, toco em várias questões que têm que ser faladas nos Açores e acho que isto vai abanar com as coisas. O meu trabalho não é só expor, fazer fotografias bonitas. É criar um diálogo.”

Entre Rabo de Peixe-mar, que é dos pobres, e a abastada Rabo de Peixe-terra, por exemplo. Entre Britney, fotografada na casa coberta de animais embalsamados trazidos por um avô caçador (e escultor) do Canadá e Carla, que à noite vende cachorros num carrinho em frente ao Teatro Micaelente, em Ponta Delgada, com o namorado – e foi Carla que Pauliana não pôde fotografar num café em Rabo de Peixe, onde vive com um tio numa casa feita “quartel-general dos gays” da vila piscatória que até há não muitos anos era descrita como o lugar mais pobre da União Europeia. Casa também onde há sempre um panelão de comida para quem aparecer com fome. “Há muitos gays em Rabo de Peixe e ao mesmo tempo as mulheres têm que ir vestidas para a água.” Paradoxo tão incompreensível para quem chega do Continente como será descobrir que também pescadores se maquilham. “Acho impressionante a forma como estes rapazinhos [como Nina] andam pela rua num meio de pescadores. Mesmo nas festas religiosas.”

Depois disto, “O Narcisismo das Pequenas Diferenças” será então título roubado a Freud e à sua teoria sobre aceitação e intolerância. “Dei com a expressão num livro, anotei e depois descobri que o narcisismo das pequenas diferenças é uma teoria altamente estudada por psicólogos que tem exatamente a ver com o narcisismo de não se assumir o próximo e achei que enquadrava perfeitamente esta ideia destes jovens jovens que vivem numa ilha e que supostamente não deveriam ser diferentes.”

Porquê? “Têm a mesma idade e percebi que todos acreditam nas mesmas coisas. Na realidade, tantos os miúdos de Rabo de Peixe como da cidade querem é estar ao telemóvel, ouvir música, o Facebook, o show off, as selfies, há muitas semelhanças. Mas depois há estas pequenas diferenças que não queres ver e que te tornam narcisista e que te impedem de te aproximares do outro por criarem desconfiança.”