Dizimou cadeias familiares, elo a elo, fez cair o luto sobre muitos dos que lhe escaparam. Estiolou amores, desmanchou noivados, frustrou desejos, infernizou vidas, secou projectos. Pôs fim à possibilidade dos alexandrinos, “originais e exactos”, com que Cesário sonhou e deixaria por compor, e fez de António Nobre um peregrino forçado – cindiu mundos, cortou futuros. A tuberculose, na sua grande e fatal acção dramática, é hoje – e passados mais de cem anos desde que Koch descobriu o bacilo causal (1882) e apesar do enorme avanço verificado por todo o mundo desenvolvido, da vacinação, do rastreio e da cura farmacológica possível – um cadáver histórico, ainda por enterrar.
É esse cadáver que Isabel Rio Novo traz para a pira literária. Não para lhe passar a tinta mítica que a sua história milenar admitiria ou recobri-lo com o verniz lírico dos poetas tísicos. Antes para o reerguer das brumas do esquecimento e lhe devolver a antiga força maligna. Trata-se de reanimar uma maleita que marcou o nosso imaginário romântico e que é aqui escalpelizada com um rigor quase cirúrgico ao longo de breves capítulos – 12, essa cifra sagrada de que a autora de o “Rio do Esquecimento” (2016) saber retirar ganhos. Nesta (re)construção, conta a autora com um invulgar poder incisivo, sem alarde, a sorrateira ironia – até ao limite da dor e da crueldade, e às vezes para além delas, numa grande sobriedade de processos, como se a vida e a morte tivessem de concordar com uma ideia de literatura.
“A Febre das Almas Sensíveis” passa-se no início do século XX, num sanatório no Caramulo, longe do pulsar dos dias urbanos, activos, laboriosos, impossíveis para os doentes tuberculosos que enfrentam o cansaço do repouso. Lá, onde “o tempo perdia a sua grandeza matemática para se equiparar a uma estranha espécie de medida biológica”, e a morte se cola à vida, se mistura com ela numa coabitação intolerável, num misto de repulsa e antegosto. É – sem rodeios nem eufemismos – “a casa dos mortos”, para usar a expressão do brasileiro Nelson Rodrigues, também ele caído num sanatório.
É neste espaço de martírio que Armando, de cuja história familiar não despregamos, se converte no sepulcro que vai aprofundando, de molde a que nele caibam as imagens da vida que já não há, as da separação e as imagens da sua própria morte. Como se o habitasse uma catástrofe, só aplacada pela noite adúltera passada com Carolina, espécie de noivado do sepulcro. Sem noivos, só com sepulcros a aguardar. Morrerá agarrado ao seu último desejo. Nem morto nem vivo, impossível de fazer viver e de matar, ele é o errante da má fortuna, o equivalente impossível de Camões, cuja fita da vida troca pela revisão da sua própria tragédia no cinema do sanatório, a disponibilizar as superproduções de reconstituição histórica de Leitão de Barros. Não por acaso.
Difícil é não ver no sanatório a “casa portuguesa”, com certeza, o Portugal parado do Estado Novo em pequeno formato, o país do silêncio respeitador, isolado, mal dissimulando a carência das décadas, a síndroma da miséria de que este livro é o espelho textual. “A tuberculose não era, afinal, a febre das almas sensíveis. Era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. Era a doença dos sobreviventes das guerras, estropiados, desnutridos, desprovidos de tratamento, deambulando pelas ruas com quadros graves de primoinfecção. Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável.”, lê-se no capítulo “A peste branca”.
Antes de nos fazer subir as serranias que levam até ao edifício do Grande Sanatório (e ao cume da delicadíssima sensibilidade de Isabel Rio Novo), onde o jovem Armando entra para não mais voltar a casa, conduz-nos o narrador numa viagem menos escarpada, menos íngreme mas mais longa, traçada numa escrita firme mas serena, meditada, de costas voltadas para aquele contorcionismo que nos faz desapetecer muita da ficção narrativa que hoje por cá se publica: a viagem que leva das ruinas do presente, visitadas por uma rapariga que colecciona histórias de escritores tuberculosos, ao século XIX. Os tísicos Soares dos Passos, Júlio Dinis, António Nobre, Cesário Verde passam pelos nossos olhos como figuras de um cortejo fúnebre que vai engrossando à medida que vira o século e voltamos as páginas. Só que nem enfadonho, nem pomposo e nem sequer carregadamente sombrio, apesar da escura tragédia que o atravessa. E sem nos desviar do curso narrativo propriamente dito.
Para Armando, tísico comum, e os que partilham com ele o ofício de morrer, não houve cortejo, choros ou dobre de sinos. A sua morte é, como no verso de Jorge de Sena, aquilo “de que todos se livram no enterro dos outros”. Dele poderia dizer Sena o mesmo que disse num poema feito a partir de uma conhecida tela de Rembrandt: “morto. Apenas morto. Nada mais que morto”. Aparentemente, mera matéria destituída de vida. Não se julgue, no entanto, que Armando – o morto com que abre e fecha a narrativa, numa circularidade de eterno retorno – é a personagem plausível de um romance realista. Nem que as personagens que o compõem são figuras periféricas, bibelots decorativos. Como esquecer, aliás, Carolina, a ‘mulher-anjo’ de corpo deformado pela toracoplastia? Juntas, constroem a cadeia de nexos que acaba por determinar o significado totalizante de um romance que, sem sacudir o pó dos séculos, trata cada palavra com o desvelo de um corpo frágil.
Num tempo em que a morte é apressadamente despedida, tal o embaraço ou a dissimulada repulsa, em que a angústia do fim se torna cada vez mais difícil de engolir, eis um livro que investe contra as figuras da perda e da ausência e o próprio fim da elegia, que entretanto se transformou na “arte de perder”.