O Bloco de Esquerda vai levar à votação a proposta de Lei de Bases da Saúde elaborada por António Arnaut e João Semedo ainda nesta sessão legislativa. Os bloquistas querem obrigar os socialistas a tomar uma posição sobre o texto feito por Arnaut, o ‘pai do Serviço Nacional de Saúde’, que é também o presidente honorário do PS.
A iniciativa do BE deverá ser agendada até junho. O calendário não é inocente: os bloquistas querem pôr pressão num tema que consideram central e não vão esperar pela proposta de Lei de Bases que está a ser desenhada por Maria de Belém a convite de António Costa.
A ideia é que o debate sobre a Saúde se faça ainda antes da discussão daquele que será o último Orçamento do Estado desta legislatura e evitar que o assunto ‘escorregue’ para um momento em que os partidos já estarão mais concentrados a fazer o seu caminho para as eleições do que em encontrar soluções negociadas em conjunto.
Uma vez que a proposta de Arnaut e Semedo foi anunciada antes de António Costa convidar Maria de Belém para a tarefa de elaborar uma Lei de Bases, os bloquistas não se sentem condicionados por esse calendário. Mais: à esquerda olha-se para esse gesto de Costa como uma forma de encontrar uma alternativa ao texto de Arnaut e Semedo que permita manter as PPP e os hospitais EPE. E a conhecida ligação de Maria de Belém ao grupo Luz Saúde contribui para alimentar esta desconfiança.
«Levaremos esta proposta ao Parlamento e vamos debatê-la pelo país», prometeu Catarina Martins, na apresentação do livro Salvar o SNS que contém as ideias de António Arnaut e João Semedo para a Saúde.
Três meses depois, os bloquistas já promoveram diversos debates e consideram que chegou o momento de entregar a proposta na Assembleia da República.
Do lado do Bloco sabe-se que o PS poderá sempre fazer baixar a proposta de Lei de Bases de Arnaut e Semedo a uma comissão, evitando a sua votação. Mas os bloquistas acham que a forma como o texto está escrito vai fazer com que seja difícil, mesmo votando artigo a artigo, aprovar a proposta sem aceitar o princípio de que a rede privada só deve ser suportada por dinheiros públicos quando e onde falhar a rede pública. E é essa definição que os bloquistas pretendem forçar.
Embaraço para o PS
A iniciativa bloquista deve, por isso, causar embaraço ao PS. Será muito difícil aos socialistas aprovarem o texto assinado por Arnaut e Semedo, uma vez que este assenta fundamentalmente sobre a ideia de que os privados só poderão prestar cuidados de saúde no SNS «quando e enquanto demonstradamente o SNS não disponha de capacidade e recursos próprios para a prestação desses cuidados».
Ora, essa não é a perspetiva do ministro Adalberto Campos Fernandes. «A solução não está em nacionalizar os hospitais privados nem em trocarmos o sistema público num sistema exclusivamente de propriedade pública. Não há um único país da Europa onde isso aconteça e não é essa a tendência nem o espírito da própria lei fundacional do SNS e da lei de bases, que definiram a existência de um sistema misto. A ideia é reforçar o SNS», dizia ainda ontem o ministro da Saúde à margem de uma iniciativa que serviu para apresentar uma avaliação externa ao sistema de saúde português e anunciar uma comissão que irá escrever o Livro Branco da Saúde (ver pág. 29).
Maria de Belém diz estar a ouvir Arnaut e Semedo
Além do conteúdo, os timings de BE e Governo sobre este assunto estão longe de coincidirem. Os bloquistas têm pressa, mas o prazo dado por António Costa a Maria de Belém para entregar a sua proposta de Lei de Bases da Saúde só termina em setembro. E Constantino Sakellarides, indicado por Adalberto Campos Fernandes para presidir à comissão do Livro Branco do SNS, tem até março do próximo ano para apresentar as suas conclusões.
Também à margem da iniciativa de ontem, Sakellarides desvalorizou, contudo, os tempos aparentemente desencontrados deste calendário, «Há uma lei de bases que é sobre o sistema de saúde. A comissão do livro branco é sobre o SNS. Vai haver uma articulação necessária porque o trabalho que vamos fazer será importante para a lei de bases, mas a lei de bases tem um âmbito mais amplo», justifica o consultor do Ministério da Saúde. Maria de Belém Roseira também não vê problemas nas datas da apresentação definidas, explicando que «são trabalhos diferentes».
Ao SOL, a socialista que faz parte do conselho consultivo do grupo privado Luz Saúde, assegura, aliás, que o trabalho que está a desenvolver tem em conta o texto de António Arnaut e João Semedo. «Um dos contributos é o livro que publicaram, é um contributo importante», afirma Maria de Belém Roseira, que lidera uma equipa essencialmente composta por académicos da área do Direito. «É uma lei, é natural que seja feita por juristas. Mas o trabalho tem várias fases. A primeira fase é a apresentação de um projeto de proposta, a segunda será a das audições aos profissionais do setor», diz.
PSD, BE, PCP e CDS põem Saúde no topo da agenda
A Saúde está a ser escolhida por quase todos os partidos como um dos grandes temas políticos deste final de legislatura. BE e PCP vão aproveitar o momento da negociação do último Orçamento do Estado desta legislatura para tentar reforçar o investimento público nesta área.
Catarina Martins tem frisado que estão ainda por repor mil milhões de euros dos 1600 milhões que foram cortados na saúde durante a intervenção da troika. E vai desafiar António Costa a definir-se ideologicamente nesta área, depois de ter visto o Governo optar por manter as PPP na Saúde cujos contratos acabavam nesta legislatura.
À direita, há muito que Assunção Cristas vem aproveitando os debates com o primeiro-ministro para o confrontar com o aumento continuado das dívidas dos hospitais. «O que nós sentimos é que a Saúde é um parente pobre da governação. De facto, 5,4% do PIB ser alocado à saúde é muito pouco e é preciso mais dinheiro, com certeza que bem gasto e com soluções a pensar não apenas no imediato, mas também no futuro», dizia Cristas em janeiro, numa das muitas vezes em que tem tentado demonstrar a tese de que «o Governo não virou a página da austeridade».
A nova liderança do PSD também põe a saúde – a par do tema dos incêndios e do Montepio – no topo da agenda de oposição a António Costa. «As eleições não se ganham, perdem-se. E é preciso apontar as fragilidades do Governo e ganhar credibilidade», explicou Rui Rio ao partido, no Conselho Nacional desta semana, que serviu para traçar a estratégia do PSD. Para Rio, a Saúde é uma dessas «fragilidades» e não foi por acaso que uma das primeiras iniciativas do novo líder parlamentar social-democrata, Fernando Negrão, foi uma visita ao IPO de Lisboa.
António Costa tem respondido às críticas com o «aumento de 5% da despesa com a saúde» e com o reforço da contratação de médicos e enfermeiros, ao mesmo tempo que desmente a existência de cativações na Saúde. Mas o setor continua a ser um dos mais problemáticos para o Governo. Prova disso é que depois de esta semana ter havido mais uma greve de enfermeiros, para a próxima será a vez de os médicos pararem nos dias 10, 11 e 12 de abril. *com Marta F. Reis