Margarida Marques. “Com este governo mostrámos que não somos despesistas”

‘Há uma tradição da direita criticar a esquerda por dizê-la despesista’, aponta a deputada para quem isso agora acabou

Na sua primeira entrevista desde que deixou a secretaria de Estado dos Assuntos Europeus, Margarida Marques revela que mantém boa relação “política e pessoal” com quem trabalhou e deixa largo elogio ao primeiro-ministro. Sem “raivas construídas”. A deputada não quer regressos a um passado orçamental menos tranquilo que o atual. 

Portugal fez parte do conjunto de países europeus que não se solidarizou com o Reino Unido ao ponto de expulsar diplomatas russos depois do ataque químico em Salisbury. Como viu isso?

Mas Portugal solidarizou-se com o Reino Unido. O próprio ministro dos Negócios Estrangeiros britânico [Boris Johnson] escreveu uma carta que é conhecida, em que reconhece solidariedade portuguesa. Aliás, Portugal seguiu exatamente aquilo que seguiu a União Europeia: a UE chamou o embaixador da UE na Rússia, mas não devolveu à Rússia os diplomatas que estão na representação russa na União Europeia. Foi exatamente isso que nós fizemos.

Mas, ao contrário da Alemanha, da França, de Espanha e de Itália, não expulsámos diplomatas.

Portugal fez exatamente aquilo que fez a União Europeia porque entendeu que era a forma mais correta de responder a este problema. Eu também creio que foi a forma mais correta de reagir.

Hoje, o posicionamento português em relação à Europa é mais ou menos tímido do que noutros tempos?

Portugal tem, concretamente, uma atitude menos tímida nos aspectos europeus. Portugal, e o governo atual prova-o desde início, tem uma personalidade própria no contexto da União Europeia. Participa na definição das políticas, colocando-se sempre numa posição ativa para esse propósito.

Por exemplo?

Agora, na discussão das novas perspetivas do quadro financeiro plurianual pós-2020. Antes da Comissão Europeia apresentar a sua proposta [irá fazê-lo no dia 2 de maio], Portugal apresentou um conjunto de propostas e orientações, participando ativamente nesse debate. Anteriormente, por exemplo, no debate em torno da possibilidade de Portugal sofrer sanções referentes ao período de 2013/2015, por um lado, e, por outro lado, a possibilidade de poder ter sido vítima de suspensão de fundos estruturais, exatamente pela mesma razão – não se cumpriram os objetivos orçamentais a que Portugal se tinha comprometido em 2013/2015 -, e desenvolvemos sempre uma estratégia de relação com a Comissão Europeia e demais instituições europeias no sentido de explicar qual era a ambição de Portugal e como é que pretendíamos respeitar as responsabilidades que temos no quadro europeu. Nunca nos colocámos na posição de obedecer àquilo que são orientações de Bruxelas: Portugal participa na definição dessas orientações e tem uma responsabilidade relativamente a essas orientações. Foi essa, aliás, uma mudança significativa deste governo face ao governo anterior.

Quando falámos em não cumprir com as metas, como Portugal não cumpriu entre 2013 e 2015, o facto de o Eurostat contar a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos no défice do ano passado não pode também fazer com que Portugal volte a falhar as metas a que se propunha?

Portugal cumpriu as metas e está a cumprir as metas. Por isso mesmo saiu do Procedimento por Défice Excessivo, não teve suspensão de fundos estruturais e cumpre as suas responsabilidades em termos de matéria europeia. Portugal não está em Procedimento por Défice Excessivo porque está a cumprir claramente as regras europeias. 

E acredita ser possível manter isso face a uma mudança de conjuntura?

Eu espero que seja possível manter. Tive oportunidade de dizer isso mesmo, hoje [esta quarta-feira], na audição conjunta entre a COFMA [comissão parlamentar de Orçamento e Finanças] e a Comissão de Saúde. Coloquei essa mesma questão ao sr. ministro das Finanças [Mário Centeno]. Portugal tem resultados macroeconómicos e orçamentais muito positivos e a questão é verdadeiramente essa: há que manter a estabilidade orçamental. Nenhum português está interessado em voltar ao passado, e só não voltamos ao passado se conseguirmos manter a estabilidade orçamental que hoje atingimos.

Vai perdoar-me a impertinência, mas quando diz que não podemos correr o risco de regressar ao passado estamos a falar de 2010, 2011, 2014? Qual é o horizonte do passado a evitar, do seu ponto de vista?

Queremos evitar um passado de não cumprimento de responsabilidades ao nível europeu. Evitar um passado que foi altamente penalizador para o nosso país. Todos nós assistimos: após a rejeição do PEC IV, o aumento brutal das taxas de juro e o que significou isso em termos de desequílibrio das contas públicas. São exatamente riscos dessa natureza que nós não podemos correr. Há uma certa tradição da direita criticar a esquerda por dizê-la despesista; nós conseguimos provar que não somos despesistas. Com este governo, mostrámos que não somos despesistas, mas que conseguimos satisfazer aquilo que são as expectativas das pessoas e repôr direitos que essas pessoas haviam perdido, respeitando, ao mesmo tempo, compromissos que temos enquanto membros da moeda única. E o euro não é uma moeda só nossa: é uma moeda europeia, de 19 países. O que é preciso entender é que nós também contribuimos para essas responsabilidades, para esses compromissos. Portugal também vota na União Europeia quando são definidos esses objetivos. 

Essa questão que dirigiu a Mário Centeno e este discurso de bom comportamento orçamental estão alinhados com o artigo que o sr. ministro assinou recentemente no diário Público. Subscreve esse artigo, suponho, numa lógica de que a estabilidade financeira é essencial para melhor enfrentar o futuro? 

Subscrevo porque entendo que só com contas públicas sãs é possível desenvolver políticas sociais e políticas de crescimento económico. Só com contas públicas sãs. Hoje, nós chegámos a esse momento, e é bom ele seja mantido. 

Há pouco falava do quadro plurianual. Quão importante pode ser o consenso entre o governo e o maior partido da oposição para, vou citar, “engrossar o envelope” recebido em Bruxelas?

Os períodos que antecedem os quadros financeiros plurianuais são sempre períodos de grande tensão, em que, evidentemente, cada país procura usar os seus argumentos junto das instituições europeias para manter ou valorizar o seu envelope financeiro. Mas isso não é o mais importante.

Então?

O mais importante é, por um lado, a ação fixadora das prioridades políticas. E, por outro, a forma de utilização do envelope financeiro. Portanto, não é só o montante. É aquilo que é feito antes. No momento em que, para simplificar, se assina a parceria com a Comissão Europeia que fixa o nosso envelope financeiro também é fixada uma estratégia. É, digamos, um pacote. Temos falado mais no “envelope financeiro”, mas a parceria fixa uma estratégia. E é fundamental, nesta fase em que se estabelecem prioridades a nível europeu, trabalhar para que as nossas prioridades [portuguesas] se integrem nessas prioridades europeias. Para depois não se dizer que não pudemos recorrer a fundos estruturais para financiar determinada prioridade porque essa prioridade não integra as prioridades europeias. Esse é um risco que não podemos correr e torna importante agir já. Relativamente à sua questão, eu creio que nestas matérias é sempre importante haver um consenso nacional: com o PSD e o CDS, mas também com o PCP e o Bloco de Esquerda. Trata-se, afinal, da definição de um quadro que se inicia a 1 de janeiro de 2021 e termina no final de 2017, logo, é um período longo, em que o país será confrontado com novas prioridades.

Mas o consenso também representa uma mais-valia em Bruxelas?

A nível europeu, é importante. Quando este debate se fizer no Parlamento Europeu é bom que os eurodeputados portugueses estejam tendencialmente numa posição que possa apoiar aquela que é a ambição do governo.

Recentemente, a sua sucessora como secretária de Estado dos Assuntos Europeus referiu a existência de uma “guerra comercial” entre os Estados Unidos da América e a Europa. É mesmo assim?

Os Estados Unidos tomaram medidas, mais recentemente na questão do aço, que, de certa forma, colocam em causa as relações comerciais justas que já existiam entre a União Europeia e os Estados Unidos. A Comissão Europeia, que tem competência nesta área, procurou dialogar com os Estados Unidos no sentido de apaziguar essa relação e no sentido de evitar um crescendo em matéria de guerra comercial. Eu penso que isso foi conseguido: aquilo que foi negociado com os EUA permitiu, pelo menos neste momento, estabilizar a relação comercial. Se a questão está resolvida? Não está. Mas a comissária Cecilia Malmstrom conseguiu pôr um travão no problema. 

Quão importante será, para o Partido Socialista português e para o Partido Socialista Europeu, a nomeação de um comissário europeu por este governo?

São sempre os governos que estão no poder a escolher o seu comissário. As eleições europeias têm lugar no último domingo de maio de 2019. A seguir, a Comissão Europeia será constituída com a designação de um novo presidente da Comissão e os Estados-membros serão convidados a designar o seu comissário. É isso que vai acontecer e este governo, com naturalidade, assim fará. 

Como vê o mandato de Jean-Claude Juncker?

Sendo um homem do centro-direita, pertence a uma geração que acha que a estabilidade, a paz, as políticas comerciais e os direitos são questões importantes na Europa. Tem-se batido por essas políticas com uma grande capacidade de diálogo com os países. No nosso caso teve um papel determinante sobre a situação orçamental. 

Ele é um federalista. A Margarida Marques também é?

Eu costumo dizer, relativamente a essa pergunta, que a pior resposta é usar essa palavra (risos). Quando se entra num debate sobre a Europa e se usa a palavra ‘federalismo’ fica-se imediamente com metade da sala contra si. Eu penso que é mais importante debater o processo de integração europeia do que rotular processo de integração europeia. Dou-lhe outro exemplo: hoje estou convencida – e não sou a única – que se o tratado constitucional não se tivesse chamado ‘tratado constitucional’ teria sido aprovado. Eu, sobretudo, sou uma europeísta. Entendo que Portugal está melhor na União Europeia do que fora da União Europeia. 

Não é paradoxal António Costa ter aplaudido o Syriza enquanto líder da oposição e hoje dizer-se ‘alinhado’ com Emmanuel Macron – um homem que não tem muito a ver com Alexis Tsipras?

Parte de dois axiomas em que eu tenho a posição exatamente oposta. António Costa não se aproximou do Syriza nem se aproximou de Macron. O que António Costa tem feito – e com resultados muito positivos – é manter uma posição agregadora. A Europa não se faz de uns contra os outros. Faz-se de uma posição agregadora, e é isso que o primeiro-ministro tem feito. Nesse aspecto, António Costa tem hoje um reconhecimento significativo no contexto europeu e por parte dos seus pares. Mas em momento nenhum se aproximou do Syriza e em momento nenhum se aproximou de Macron. A palavra ‘aproximação’ em determinado momento não é a palavra apropriada. No contexto europeu, o que é fundamental é construir consensos. Há situações em que podemos não estar muito de acordo mas em que o consenso é facilitado. O fundamental é ninguém ficar de fora ou significativamente contra. É importante ninguém considerar-se ‘vítima’ de uma decisão da União Europeia. E o primeiro-ministro tem muito essa noção. Daí o seu empenho em procurar consensos alargados para além das famílias políticas… Só assim se faz a decisão a nível europeu. Está na génese no processo de construção europeia.

Na última audição parlamentar do ministro dos Negócios Estrangeiros [Augusto Santos Silva], trocaram sorrisos e e ele fez até uma referência ao seu trabalho enquanto secretária de Estado dos Assuntos Europeus. Quando saiu do governo, a senhora deputada disse que não estava à espera. É uma ferida que já sarou?

Quando uma pessoa está no governo sabe que não fica no governo eternamente. De facto, houve uma decisão política e evidentemente eu saí do governo. Sou deputada, tenho responsabilidades nessa matéria e cumpro essas responsabilidades. Não fico com raivas construídas por esse isso. Tenho uma boa relação política – e pessoal – com toda a gente com que trabalhei e com que trabalho agora. 

A relação deste governo com a União Europeia mantém-se, do seu ponto de vista, profícua? 

Mantém-se na mesma linha de procurar uma partipação ativa, de apresentação de propostas e de participar na construção das decisões. O fundamental, para mim, é isso. Participar na construção das decisões. Não deixar que as decisões sejam tomadas sem uma sensibilidade para o impacto dessas decisões nas políticas nacionais e depois vitimizarmo-nos, dizendo “nós temos que fazer isto porque Bruxelas exige”. Isso é a pior forma de estar na Europa. A forma correta é contribuir para a construção das decisões de forma a que as decisões sejam boas para a Europa e para Portugal. 

Não detecta essa vitimização em relação a Bruxelas nas novas gerações do Partido Socialista?

Não tenho essa noção. Não estou a dizer que não façamos críticas à União Europeia – devemos ter uma atitude crítica e nós fazêmo-lo – mas não partilho dessa noção. Não vejo um princípio de vitimização junto de quem trata de questões europeias no Partido Socialista. Sobretudo no governo não há essa atitude. Basta recordar o discurso que António Costa fez em Estrasburgo para entender a forma como entende o futuro da Europa e a forma como Portugal se coloca nessa futuro. 

Uma maioria absoluta do PS em 2019 é mais favorável a esse futuro que uma dependência parlamentar em partidos eurocéticos ou nem por isso?

O governo atual  é um governo sem maioria absoluta – com o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda, cuja atitude sobre a Europa é diferente entre eles e para com o PS – e isso nunca criou problemas ao governo. O governo sabia e esses partidos sabiam que nós divergíamos sobre a participação de Portugal na União Europeia. O governo tem feito bem na União Europeia e continuará a fazê-lo: quer numa modalidade de governo como a atual, que provou não criar dificuldades, quer com uma eventual maioria absoluta. 

Ainda lhe daria gozo ter funções executivas?

Eu não faço a mínima ideia nem sequer coloco essa questão. Neste momento, sou deputada e gosto muito do que estou a fazer.