Nascido em Estarreja, Álvaro Garrido é um apaixonado e um estudioso do mar e das pescas. Entre 2003 e 2009 foi diretor do Museu Marítimo de Ílhavo, de que hoje é consultor. Já viajou a bordo do Crioula e dedicou a sua tese de doutoramento à Campanha do Bacalhau, um esquema de economia dirigida desenhado pelo Estado Novo para libertar Portugal da dependência face ao estrangeiro no que tocava ao consumo deste peixe.
Licenciado em História e atualmente professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Garrido assina o prefácio de A Campanha do Argus (ed. Cavalo de Ferro), um livro escrito há cerca de 70 anos por Alan Villiers, um oficial de marinha australiano que foi convidado pelo regime salazarista para testemunhar a perícia, a coragem e a entrega dos pescadores portugueses nas águas geladas do Atlântico Norte.
Pelo nome, pensei inicialmente que Alan Villiers seria francês, mas afinal nasceu na Austrália. Quem era o autor de A Campanha do Argus?
Alan Villiers era um marinheiro e um repórter muito afamado. Já antes deste livro ele tinha escrito várias crónicas de viagem marítimas e uma biografia do capitão Cook, e era muito procurado por editoras norte-americanas e britânicas. Para ter uma ideia, os artigos dele na National Geographic normalmente aumentavam ainda mais a tiragem da revista. Era um homem talentoso, e que tinha uma grande experiência de mar no Atlântico Sul, no encalce dos grandes exploradores do Ártico e do Atlântico Sul. Como oficial da Royal Navy tinha uma experiência e uma cultura naval muito grandes e interessou-se pelas principais marinhas civis do mundo. Estudou, por exemplo, as viagens dos clippers britânicos do chá.
Os clippers são aqueles veleiros com vários mastros?
Exato. Ele chegou a fazer esse percurso de navegação para o poder experimentar na pele. Depois de acabar a Segunda Guerra estes grandes marinheiros e cronistas tiveram muito mercado. Havia um certo encantamento com as crónicas da vida marítima. E ele interessou-se muito, a dada altura, por experiências mais ou menos anacrónicas e sobre-humanas de marinhas civis em atividade no seu tempo.
E como veio parar a Portugal?
O encontro do Alan Villiers com o Estado Novo resulta de uma encomenda. Quem toma a decisão é o Pedro Teotónio Pereira, na altura embaixador de Portugal em Washington. Teotónio Pereira era apaixonado por navios à vela e muito amigo de Henrique Tenreiro, o homem forte das pescas corporativas, porque tinham sido ambos colegas na Escola Naval. A família tinha interesses nos seguros e o pai mandou-o para Zurique estudar Cálculo Actorial, Matemáticas Superiores, mas nunca se desligou dos navios, da vela e sobretudo da pesca do bacalhau, que ele aliás ainda incentivou quando esteve no governo como ministro do comércio e da indústria, nos anos 30. Aliás foi ele que lançou, com o ministro que precedeu, Sebastião Ramirez, conserveiro algarvio, a campanha do bacalhau e o fomento da frota nacional. Mesmo depois de abandonar essas funções, quando era embaixador em Espanha junto do franquismo, gostava de vir ver os navios de vela, os lugres, os bacalhoeiros, a largada triunfal.
O que era isso?
Era a bênção dos bacalhoeiros que se fazia na Junqueira e em Belém, em abril, maio. Quando os navios largavam para a Terra Nova havia uma cerimónia religiosa e profana, um ritual nacionalista até com alguma liturgia fascista nos primeiros anos.
Essa cerimónia tinha antecedentes ou foi inventada pelo Estado Novo?
Em Portugal não tinha, mas havia grandes rituais desse género nos portos bacalhoeiros da Bretanha francesa, como Saint-Malo ou La Rochelle. O Estado Novo transforma isso num ritual nacionalista. Os navios de Aveiro, de Viana, da Figueira vinham todos a Lisboa para carregar víveres e partiam depois de uma missa campal que durante os primeiros anos foi presidida pelo próprio Cardeal Cerejeira. Pedro Teotónio Pereira foi o mentor de tudo isso.
E onde entra o Villiers?
A maneira como os portugueses pescavam bacalhau era muito artesanal, arcaica – já nenhuma frota internacional pescava assim – e havia que justificar um pouco esse anacronismo, a dureza do trabalho, bem como a organização cooperativa que governava todo o subsetor da pesca do bacalhau. Então Pedro Teotónio Pereira, que era um grande leitor do Villiers, convida-o para embarcar num navio da frota portuguesa, e paga-lhe – é uma encomenda. Villiers embarca no Argus na campanha de 1950, encanta-se por tudo aquilo – pela bravura dos pescadores, pela destreza técnica, pelos capitães – e escreve este livro, que se torna um bestseller internacional. É editado em inglês em 1951 e em Portugal no mesmo ano. Depois disso conhece edições em 16 línguas, o que é extraordinário.
É um sucesso.
E torna-se muito conhecido nas províncias atlânticas do Canadá, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em Portugal. Era um livro de camarote muito comum nos navios da marinha de guerra de vários países, e fez uma propaganda muito eficaz da pesca do bacalhau como arte de marinharia, tal como o Estado Novo esperara que ele fizesse. Não por acaso em 1951 Salazar recebe Villiers, que é objeto de uma série de mordomias em Portugal, e depois atribui-lhe o prémio Camões do SNI, em 1952, que distinguia obras estrangeiras sobre a realidade portuguesa. A obra é muito bem recebida pelos homens do mar porque oferece um retrato muito realista da pesca, embora recalque aspetos de conflito, tensões, dissensões, e exalte o enquadramento político que o Estado Novo ofereceu a esta atividade. Aliás, a pesca do bacalhau como herança cultural portuguesa nos anos 50 e 60 tornou-se um mito além-fronteiras muito por causa deste livro. E ainda hoje esta crónica de viagem suscita muita adesão das pessoas do mar, mas mesmo para quem nunca andou ao mar é um livro muito agradável de ler.
Presumo que não fosse normal para os pescadores terem consigo alguém de fora. Villiers deu-se bem com a tripulação?
Nesta época tinham sido muito poucos os casos de embarque de pessoas estranhas às tripulações em navios de pesca do bacalhau da frota portuguesa. Nos anos da guerra houve alguns jornalistas do regime para fazerem também crónicas de viagem com fins propagandísticos, nomeadamente o Jorge Simões, que era jornalista e assessor de imprensa do Tenreiro, mas isso era muito incomum. Mas o Villiers fica amigo dos oficiais náuticos e mesmo depois ainda volta a conviver com eles.
Foi bem aceite?
O Villiers era um homem de mar. Tinha uma cultura náutica muito forte, tinha embarcado em contextos muito diversos, e estabeleceu uma relação de cumplicidade muito fácil com o comandante, o capitão Adolfo Paião, a quem ele tece uma homenagem rasgada no livro – que curiosamente era um antepassado do cantor Carlos Paião –, mas também com os oficiais, com o piloto, com o imediato, e com a tripulação em geral. Admirou os seus gestos e chamou-lhes ‘os melhores pescadores do mundo’, e portanto entranhou-se naquele universo e tornou-se um deles também, porque era um homem de mar.
Quantos homens compunham a tripulação de um navio bacalhoeiro como o Argus?
Normalmente estes navios levavam à volta de 50, 60 homens, dependendo da dimensão. Houve navios com cem homens, mas em regra andavam à volta dos 50 tripulantes.
E faziam todos a mesma coisa?
Não. Grande parte eram pescadores, pescadores-marinheiros, mais exatamente, porque quando eram largados no seu bote, o dóri, precisavam de ter rudimentos de marinharia, de remar, de saber orientar-se e regressar ao navio-mãe, o que era um perigo. Muitos eram pescadores-salgadores, e tinham um salário fixo maior porque eram responsáveis também pela manipulação do bacalhau e do sal nos porões para conservar a carga. Outros eram redeiros, mestres de redes, havia normalmente um radiotelegrafista – estes navios já tinham TSF –, havia um ajudante de máquinas – eram navios com motor auxiliar – e havia depois o piloto, o imediato e o capitão.
Havia até o ‘parte-cabeças’, que tinha a função de separar as caras do bacalhau. Quando se fala de caras, a que corresponde?
Corresponde mesmo à cabeça, aos ossos, que têm nevroses e uma espécie de geleia, de gordura, que é muito agradável. Durante o Estado Novo, por razões de produtividade, tudo era aproveitado, tudo era negócio: as caras, as espinhas, os samos…
O que são os samos?
São as bexigas, um petisco também muito apreciado. Até o óleo de fígado tinha procura – aliás houve um programa governamental de inclusão de vitaminas nas escolas e ainda há muita gente que tem essa memória – não muito agradável, parece. Portanto tudo era aproveitado. O bacalhau é um peixe do Atlântico, gadus morhua, com uma produtividade fantástica, isso explica em parte o fenómeno. É um animal marinho muito rentável do ponto de vista dos tecidos, é fácil de conservar, de textura agradável e muito abundante. Na história das pescarias oceânicas não há nenhum peixe que tenha despertado um negócio tão significativo até hoje, nem o arenque.
Como era a vida a bordo nos bacalhoeiros?
O navio era um universo de trabalho de noite e de dia, dormia-se muito pouco quando havia condições de peixe e de mar.
Era preciso aproveitar a oportunidade?
Exato. O grande objetivo da campanha era carregar o navio, dar lucro ao armador e trazer ao país o abastecimento, a provisão alimentar que se esperava. Nesta época ainda não havia nenhum sinal de escassez de peixe, os navios vinham normalmente carregados, amortizavam o investimento muito depressa. Nos anos de guerra, então, como os portugueses foram praticamente os únicos a pescar nos grandes bancos, houve muito peixe, os navios vinham atestados, embora fosse muito difícil navegar e pescar.
Não era perigoso?
Houve navios afundados, dois deles atingidos por submarinos alemães. O trabalho a bordo era muito, muito árduo, eles largavam às quatro, cinco da manhã, e trabalhavam durante oito, dez horas, regressavam ao convés do navio, e iam trabalhar na escala do bacalhau – ou seja abrir o bacalhau e colocá-lo para os porões. Os salgadores trabalhavam no porão, dormia-se muito pouco, com pouca água potável, com condições muito duras. Era um trabalho quase sobre-humano.
E era bem pago?
Sim, por isso havia sempre muita gente disposta a embarcar. Comparando com as outras pescarias, ganhava-se relativamente bem.
Villiers diz que se comia bem a bordo, o que me surpreendeu.
A alimentação a bordo dependia muito do armador, dependia muito do capitão e dependia muito do cozinheiro. Mas em regra não era tão boa como ele diz, é um aspeto que é ligeiramente dissimulado, porque era um dos fatores de risco de rebelião, de mal-estar a bordo. Havia peixe, havia carne. Os pescadores hoje, quando os ouvimos, falam de uma alimentação monótona, difícil e por vezes deficiente.
Eles saíam para pescar nestes barquinhos, os dóris. Às vezes perdiam o navio-mãe de vista, não era?
O Alan Villiers imortalizou essa imagem do pescador isolado no seu dóri. Só os portugueses criaram esta tradição de um pescador por bote, um modelo de pesca que incitava a competição entre os homens, porque quanto mais se pescava mais se ganhava. Os espanhóis – galegos e bascos – quando pescavam assim iam dois homens por bote. Até isto ajudou a mitificar a pesca portuguesa porque era o pescador-marinheiro entregue a si próprio.
Como faziam para se orientar no nevoeiro, por exemplo?
No grande banco da Terra Nova, e mesmo na Costa Oeste da Gronelândia, onde iam complementar a carga, havia muitos nevoeiros, e muitos homens, arriscando um pouco mais à procura de peixe, afastavam-se no navio, ou não conseguiam regressar com o bote carregado. Alguns andaram à deriva durante dias e foram resgatados por outros navios, outros morreram ali, há relatos de homens que ficaram em cima de pedaços de icebergues durante dias e foram apanhados por um cargueiro da guarda-costeira canadiana ou norte-americana, ou seja, há episódios absolutamente épicos e dramáticos – mais dramáticos até do que épicos, relacionados com os perigos do nevoeiro e com a fragilidade a que estes homens estavam expostos. Eles só tinham uma agulha de marear, a experiência e a entreajuda, que era o mais importante.
Recorda-se de algum desses casos em particular?
Há o de um pescador, não me recordo em que ano, que ficou perdido, foi resgatado, andou pelas Américas durante uns meses e quando regressou a mulher achava que tinha enviuvado e portanto já tinha casado com outro homem.
Este modelo de um navio maior, a partir do qual os homens saíam para a pesca em botes, era mais ou menos o da pesca da baleia, não era?
Sim, aliás esta técnica é trazida no século XIX pelos portugueses da Nova Inglaterra, na costa dos Estados Unidos, sobretudo pelos açorianos. Desde 1835, quando Portugal regressa aos bancos da Terra Nova, já se faz pesca à linha com dóris com um só homem e isso é trazido da pesca polivalente da Nova Inglaterra, onde muitos navios tanto eram bacalhoeiros como baleeiros. Aliás nos primórdios da pesca do bacalhau a partir dos portos portugueses pescava-se bacalhau e caçava-se baleias.
Como é hoje feita a pesca do bacalhau?
Hoje os navios portugueses pescam sobretudo no mar da Noruega, entre a Noruega e a Rússia,em sítios como a Ilha do Urso, quase no Ártico e mesmo já no Ártico, a latitudes cada vez mais setentrionais, por causa do degelo. São arrastões pela popa com congeladores, onde o peixe é conservado com grande eficácia, mas não se pode considerar que são bacalhoeiros, são navios polivalentes, porque pescam diversas espécies consoante as quotas autorizadas pela UE.
Quando passam por um cardume sabem de que peixe se trata?
Sim, hoje as sondas eletrónicas e os equipamentos de deteção não deixam escapar qualquer peixe desde que seja permitido capturá-lo. O conhecimento da biomassa, os tamanhos médios, a natureza dos fundos, tudo isso é acessível . A empiria da pesca, através de processos de adivinhação e de segredo que eram típicos da frota portuguesa e que o Villiers conta neste livro com mestria não existem mais, é uma pesca muito mais mecânica e sem a dimensão épica de outros tempos.
Ainda assim devem enfrentar tempestades.
O tempo é difícil, as tripulações são compostas por pessoas de vários países, ganha-se muito bem a bordo dos navios mas é um trabalho difícil, não é para todos. Curiosamente, e apesar de haver hoje outros cuidados de segurança, na pesca à linha do bacalhau morreu-se menos do que na pesca de arrasto.
Como foi isso possível?
Havia o apoio do navio-hospital Gil Eannes, que era muito efetivo, havia a entreajuda dos navios entre si e a entreajuda dos homens das mesmas campanhas. Eram grandes pescadores, grandes marinheiros, com muita experiência e muito arrojo… Parece incrível, mas a mortalidade na pesca à linha acabou por ser ligeiramente menor do que na pesca por arrasto. Sendo hoje uma pesca mais profissional, com muito mais cuidados de segurança, continua a haver acidentes.
De que tipo?
Acidentes naturais, pernas cortadas com cabos, acidentes violentos relacionados com o guincho e com os cabos de rede.
Ainda temos frota pesqueira?
Hoje Portugal tem apenas dez navios em atividade. O contributo da pesca por navios armados por empresas portuguesas é residual, não chega a 2% do consumo. Mas temos uma indústria transformadora de bacalhau muito competitiva, muito moderna e muito interessante. Visitei algumas fábricas na Noruega e as condições não têm nada a ver – se fosse aqui, essas unidades fechavam.
O que aconteceu ao Argus?
Quando terminou a vida de mar como navio bacalhoeiro foi comprado por uma empresa de cruzeiros turísticos nas Caraíbas, foi adaptado, fez muitos anos ali e a determinada altura, há uns anos, foi comprado pela empresa de pesca e de transformação Pascoal & Filhos, da Gafanha da Nazaré, e hoje está lá.
Pode ser visitado?
Não. É visível só a partir do cais. Foi uma iniciativa arrojada do ex-proprietário do Santa Maria Manuela. Hoje o Argus é parte do património naval português, é um navio com uma história mítica e, graças ao Alan Villiers, é conhecido no mundo inteiro e muito procurado pelas pessoas que se interessam por estas coisas.
Em que estado se encontra?
Está à espera de um projeto e de uma oportunidade de recuperação. Tem o casco em decomposição mas penso que haverá uma congregação de esforços para fazer daquele navio um património naval flutuante e recuperá-lo. Seria muito importante para o país.