“A acusação é a principal inimiga de si mesma. Não está suficientemente indiciada. E tem outro problema: Chega-se ao fim e não se percebe o porquê dos crimes que foram imputados”. Foi assim que a defesa de Miguel Coelho, representado pelo advogado Rui Patrício, sintetizou os erros da acusação feita pelo Ministério Público (MP) no âmbito do processo que envolve ex-administradores da TAP, a transportadora angolana Sonair, responsáveis da Sonangol e um alegado esquema de lavagem de dinheiro.
Segundo o despacho de acusação do MP a que o i teve acesso, teria sido montado um esquema de circulação de dinheiro entre Portugal e Angola: o dinheiro saía do capital da Sonangol e da Sonair, ficando os montantes sob posse de pessoas ligadas à petrolífera angolana. A empresa de consultoria Worldair – representada por Miguel Coelho, o advogado que o MP acredita ser o cérebro por detrás deste plano – intermediou uma alegada prestação de serviços pela TAP à Sonair na área mecânica. Para a realização deste trabalho, a consultora cobrou uma elevada comissão – mais de 74% do valor acordado no contrato estabelecido entre as transportadoras aéreas. Esse dinheiro era depois posto a circular através de offshore, acabando por ir parar à esfera de pessoas ligadas à Sonangol.
A TAP acabou por não prestar qualquer serviço à Sonair, que “nunca exigiu a prática de qualquer trabalho de manutenção de motores de aeronaves”, lê-se no despacho de acusação, a que o i teve acesso. A transportadora portuguesa recebeu cerca de 25 milhões de euros por serviços que não desempenhou – 18 milhões correspondiam a comissões da Worldair pelos supostos serviços de consultoria enquanto intermediária deste negócio. No entanto, a TAP só emitiu faturas de 9,9 milhões de euros, interrompendo os pagamentos na sequência das investigações levadas a cabo pelas autoridades.
Uma das pessoas que terá sido beneficiada por este esquema foi Luís Ferreira do Nascimento José Maria, membro da nova administração da Sonangol nomeado pelo presidente angolano João Lourenço – dos 25 milhões de euros que terão saído dos cofres da Sonair, 2,5 milhões foram parar às mãos de Luís Maria. Outras das figuras ligadas à petrolífera angolana que estarão envolvidas neste alegado esquema de desvio de dinheiro são Francisco José Lemos Maria, ex-presidente da Sonangol, e Mirco Martins, enteado do ex-vice-presidente de Angola e antigo líder da petrolífera Manuel Vicente. Os crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais estão abrangidos por uma amnistia decretada pelo antigo presidente angolano, José Eduardo dos Santos, em 2015. Por isso, em causa está apenas um crime de abuso de poder, imputado apenas a Luís Maria, que era na altura administrador da Sonair, e João Alves Andrade, antigo presidente da transportadora angolana – estes foram os dois gestores que assinaram o alegado contrato fictício com a TAP.
A guerra do processo administrativo
Um dos focos tanto da defesa de Miguel Coelho, como da dos restantes arguidos, foi o ‘finca pé’ do MP em relação à entrega de uma cópia integral do processo administrativo que deu origem a este processo-crime. O advogado Rui Patrício defendeu, durante o debate instrutório, que independente das restantes “falhas” que possam existir na acusação, o facto de não ter sido concedido acesso à totalidade do processo administrativo faz com que a defesa “não tenha prova essencial” e não se consiga “defender como deve ser”.
A defesa de Ana Paula Ferreira – advogada que, juntamente com os colegas de profissão Miguel Coelho e João Carlos Correia, terá ajudado a montar o esquema de circulação de dinheiro – foi mais longe e criticou a forma como o processo administrativo foi conduzido, alegando que se tratou de um procedimento “evasivo da privacidade das pessoas” e que foram recolhidos indícios, nomeadamente em 2011, para a abertura de um inquérito e o MP nada fez. “O MP não tem o poder de decidir se abre ou não inquérito – tem sim a obrigação de o fazer assim que percebe que há indícios suficientes para tal”, alegou a defesa, que frisou a existência de relatos de diligências externas que tinham ocorrido durante este processo “sem qualquer controlo de um juiz”. Recorde-se que a abertura de inquérito só ocorreu em 2013 e o processo administrativo teve início em 2010.
Este processo administrativo já tinha gerado um clima de tensão entre o juiz de instrução criminal (JIC) responsável por este caso, Ivo Rosa, e o procurador que formulou a acusação, Carlos Casimiro: o JIC exigiu uma cópia integral do processo administrativo, mas o procurador recusou-se a cedê-la, alegando, como noticiou o semanário “SOL”, a “impossibilidade prática de enviar certidão completa dos autos por permitir a identificação dos funcionários das entidades a quem foram prestadas informações e que as transmitiram ao MP”.
O caso passou para o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e, mais tarde, para a Procuradoria-Geral da República (PGR), que acabou por dar razão a Ivo Rosa, ordenando a cedência de uma cópia do processo administrativo, excluindo apenas “todos os dados identificativos de quem procedeu à comunicação de operação suspeita e prestou ou forneceu, no cumprimento dos seus deveres funcionais e legais, voluntariamente ou a solicitação do MP, informações e outros elementos que naquele procedimento foram integrados”. O MP acabou por remeter mais dados, mas continuou sem ceder bastantes informações.
As casas e os contratos
O i sabe que é provável que o JIC decida deixar cair os crimes de corrupção ativa com prejuízo do comércio internacional e branqueamento de capitais.
De acordo com a acusação do MP, para além da circulação do dinheiro, “os promotores do esquema desenvolveram, também, uma forma de esses fundos serem aplicados na aquisição de imóveis, em particular de certos empreendimentos urbanos, caso da Urbanização Fontalgarve, em Almancil, perto de Loulé, no Algarve, ou do empreendimento sito na Rua Cap. Salgueiro Maia, n° 1 e 3, em Moscavide, na zona nova do Parque das Nações, onde foram compradas frações em nome de sociedades nacionais constituídas com base nas sociedades offshore beneficiárias ”.
Ora, segundo a defesa de Ana Paula Ferreira, a compra destas casas não pode ter sido realizada para branquear o dinheiro em causa, pois os imóveis foram adquiridos antes do dinheiro ter começado a circular: “Como não se teve o cuidado de comparar os pagamentos e as escrituras? O cuidado que se pôs [na acusação] foi zero”. O i, que consultou o processo, constatou pela análise financeira que a maioria das habitações em causa foram de facto adquiridas muito antes de o contrato entre as duas companhias aéreas ter sido realizado em 2010.
Outras das questões apontadas durante o debate instrutório foi o papel da TAP neste esquema. A defesa de Vítor Pinto e Fernando Sobral, ambos antigos altos quadros da transportadora portuguesa, acusados sem terem recebido qualquer contrapartida pela sua participação no esquema, continua a “não perceber” o que os dois arguidores trouxeram ‘a mais’ para o caso. “Existem pagamentos diretos da Sonangol à Worldair [noutras situações]. Então por que razão é precisa a intervenção da TAP? Se o propósito é fazer o dinheiro circular, porquê meter a TAP ‘ao barulho’?”, questiona a defesa. O i constatou, durante a consulta do processo, que não são especificados os benefícios que os administradores da transportadora portuguesa terão retirado após esta alegada intervenção no esquema de circulação de dinheiro.
Além disso, existe outro ponto que, de acordo com os advogados de defesa, não está bem explicado: o MP afirma que foi criada “uma forma de granjear contratos de prestação de serviços, designadamente na área da assistência técnica a aeronaves” e que “ao longo do período de vigência do contrato entre a SONAIR e a TAP (entre 2009 e 2012) a primeira empresa, credora dos serviços, nunca exigiu a prática de qualquer trabalho de manutenção dos motores das aeronaves, pois, na realidade, não se pretendia a realização dessa prestação”. No entanto, os arguidos continuam a defender que os contratos em causa eram verdadeiros.
“Tudo o que consta nos autos contraria a ideia de que o contrato era falso. O que se paga é a disponibilidade. Mesmo que não sejam realizados os trabalhos, a disponibilidade tem de ser paga” e era isso que estava acautelado nos contratos, afirma a defesa dos administradores da TAP.
Todos os advogados de defesa pediram a não pronúncia dos seus clientes, ou seja, que não sejam levados a julgamento, afirmando que não existem indícios suficientes na acusação. O procurador Carlos Casimiro viu a tese do MP ser arrasada, sem a defender. A decisão do JIC é conhecida esta tarde.