Esta é uma história sobre o fôlego que se exuma dos arquivos, daqueles dias em que não se tinha generalizado ainda na imprensa a ideia da objectividade – palavra que de tão repetida, como Nelson Rodrigues notou, às tantas tornou-se “um simples brinquedo auditivo”. A virtude desse tom estrita e secamente informativo, essa língua parva e fria, que se pretende reduzida ao osso das evidências, não dominou sempre entre as modas de importação americana. Como lembrou o formidável cronista brasileiro, “na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor”. Só depois veio o copy desk, o livro de estilo dos jornais, esse aprumo todo, sem margem para “a volúpia autoral”, e que se conforma tantas vezes com as frases feitas.
Impôs-se esta função aplanadora que nos deixa entregues à verdade na sua encarnação mais somítica. Ainda que chegue em cima da hora, dê de caras com a catástrofe, tropece no cadáver ainda quente, e mesmo que a arma fumegante lhe caia nas mãos, do jornalista espera-se que tome nota de tudo no registo mais gélido possível. Que calce as luvas de latex, ponha bata e máscara, e se limite a emprestar olhos e ouvidos ao leitor… Pois, sim. Só que, nisto, o “idiota da objectividade” esquece como mesmo ver e escutar não dispensa a inteligência. Mais: só atinge a diferença e consequência desse quadro se à imaginação não retirar a capacidade de juntar dois e dois sem ficar refém do quatro. Nada como a matemática para perder o quadro geral.
Há riscos em sair bem fora da linha? Há sempre. Risco maior, ainda assim, é esta desconfiança absurda e vigilância maníaca que fez do jornalismo uma arte cínica. Cortou-se com a sagrada vaidade estilística que era a verdadeira remuneração do “pavão enfático” que só aceita ser mal pago porque conta com a compensação de ver-se impresso no dia seguinte. Seguiu-se o empobrecimento da linguagem e, depois, da própria língua, que se viu cheia de grilhetas nesse que é o estilo único praticado nas redacções. E quem também pagou a factura foi a realidade, que, mesmo se nos surge em tons de alvoroço, nos traz uma inaudita infâmia, logo acaba humilhada nos pormenores que a pintam como natureza morta, nessa entoação mortiça das frases que servem igualmente para ir tratando da rasteira intriga política de todos os dias.
E a política era justamente essa matéria pela qual Reinaldo Ferreira, a lenda maior do jornalismo português, manifestava maior desprezo. Achava-a digna não da primeira página, nem das centrais, mas de ficar na página dos anúncios. E talvez tenha chegado a hora, face à crise da imprensa, de fazer sentir a sua importância à classe política, cobrando o espaço que ela gasta com as suas manobras como publicidade. Aquele que é tido como o maior repórter português de todos os tempos, não só não perdia tempo a segurar a porta ou trocar favores com essa classe, como nunca foi acusado de ter cedido uma linha à “monstruosa e alienada objectividade”.
Estamos sobre os cem anos da altura em que o jornalista, então com apenas 19 anos, causou enorme sensação nas páginas da edição nocturna de “O Século”. Fê-lo com uma saga inverosímil que, supostamente, chegara àquela redacção na forma de cartas assinadas por um tal Gil Góis. Ao longo de seis meses, esgotaram-se tiragens, e a inteligência dos leitores foi espicaçada pelo modo como foi levada ao limite a dúvida sobre o que havia de real e de inventado n’“O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho”.
Por muito jovem que fosse, aquele que anos depois ficaria a dever ao lapso de um tipógrafo a sua imortal alcunha – Repórter X –, revelava já, a par da tarimba, um prodigioso talento na combinação de elementos das novelas de espionagem e policiais. De resto, fora essa a sua formação. Os folhetins que então inundavam os quiosques, e que colocaram o jornalismo na vizinhança dos mestres do suspense, impondo-lhe as tentações exorbitantes dos saltos da ficção no modo de dar trela à realidade. Assim, Reinaldo Ferreira pertence a uma geração que cresceu numa época em que todos os dias o que se julgava impossível levava bofetadas nas manchetes dos jornais. O horizonte ia-se desdobrando enquanto a escala aventurosa vingava pelos relatos das expedições que então conquistavam os últimos cantos inexplorados do planeta. Ao mesmo tempo, da frente da I Grande Guerra chegavam expressões de um horror que fizeram muito pelo estômago de um público que se habituou à sintaxe do inferno.
Isto foi antes dos leitores se arrogarem das vantagens de serem tratados como crianças. Antes deste signo geral da indignação, cuja sanha pretende extinguir o mais leve aroma a sensacionalismo, marcar com fronteiras de preto e branco zonas onde é tão difícil discernir o que é ou não do interesse público. Mas naquele tempo havia leitores que, tendo seguido em detalhe as movimentações na frente da Guerra, não lhes dava um fanico por tudo e por nada, nem estavam para ser poupados ao lado mais pavoroso da realidade, antes preferiam ser íntimos de toda aquela mortandade. Perdeu-se a inocência e, certamente, algum pudor, mas a indiferença, a alienação contemporânea, não eram um álibi aceitável.
Somos chegados assim à literatura da dinamite, aos especialistas no fabrico de bombas caseiras, os ousados artistas com coletes de explosivos que se faziam explodir no campo das vanguardas artísticas, e também essas penas melífluas e subtis urdindo mistérios capazes de regular a temperatura muito antes da introdução do ar condicionado. Não se pode dar ênfase suficiente à implicação que este contexto teve na atitude assumida por Reinaldo Ferreira e que o levou tão cedo a desembaraçar-se desse tocante escrúpulo em que o jornalismo se vem barricando, com tantos mais pruridos quanto se mostra incapaz de ler e reagir às convulsões do seu tempo.
Como conta Artur Portela, “o jornalismo era nele, fisicamente, uma vocação instintiva”, e responsabiliza-o por ter introduzido em Portugal “a maneira característica do jornalismo americano – incisivo, inconfidente, mesmo escandalosa, densa na sua verdade, em que as imagens, como no cinema, dominam as palavras, fotografando o que se passava e o que se não disse, o que se sabe e o que se esconde, numa reconstituição visual em que tanto as personagens como os pormenores empolgam, visceralmente desnudados”.
Talvez seja tentador pensar que, de lá para cá, no que concerne à credulidade do público, nada de substancial se alterou. Que os leitores que se deixaram cativar pelo talento delirante de Reinaldo Ferreira estariam ao nível daqueles que hoje dão eco às notícias falsas, e que se aferram aos seus preconceitos, regando-os com a verborreia das publicações mais tendenciosas e simplistas. É possível que seja assim. Um argumento favorável a esta leitura é o facto de, em face das proporções que tomou o crime inventado na Rua Saraiva de Carvalho, “O Século” ter assumido que tudo não passava de um embuste, precavendo-se contra um golpe que poderia ser fatal para a confiança que depositavam naquele diário os leitores. Já em recurso da visão oposta está o facto de o folhetim ter prosseguido enquanto ficção, e as tiragens da edição da noite terem continuado a esgotar-se. Os leitores queriam saber o desfecho da saga, e ficaram do lado do detective amador que testemunhara um crime fictício mas não inteiramente deslocado no bairro residencial de Campo de Ourique. Acompanhado do seu assistente Gafanhoto, Gil Góis (cuja verdadeira identidade continuou escondida dos leitores) levou até ao fim a caça a uma quadrilha liderada por um sinistro sujeito identificado como “o homem dos olhos tortos”.
Quanto ao repórter e à sua tentação para cair verticalmente no vício, pincelando a realidade com boas doses de fantasia, depois de expostas algumas dessas farsas, viu ser cunhado o termo “reinaldices” para denunciar as liberdades que se dava.
Mário Domingues, cúmplice de toda uma vida, e com um balanço que vinha lá de trás, dos tempos da infância e da formação universitária no que toca às leituras mais aventureiras, lembra que a sua actividade naqueles dias era a um tal ponto frenética que não havia espaço para que os linguados se ficassem pelo aquário de um só jornal. “No ‘ABC’, no ‘Correio da Manhã’, na ‘Época’, no ‘Primeiro de Janeiro’, por toda a parte onde coubesse um artigo, o seu trabalho surge, alagando páginas, aqui com um pseudónimo, acolá com outro, além com o seu autêntico nome. O episódio mais banal, a ocorrência mais insignificante, fornecem-lhe pretexto para duas ou três colunas de prosa, que, se nem sempre primava pelo rigor gramatical, nem pela pureza do idioma, que ele salpicava de neologismos arrojados, ora de estrangeirismos inéditos, prendia, fascinava o leitor com obcecado interesse que aumentava de linha para linha.”
E foi com um neologismo que Reinaldo Ferreira rebateu tantas vezes a fama que começou a persegui-lo de traficante de ficções por factos. Ele garantia que nunca fez mais do que “reporterxizar” a realidade. E como bom exemplo deste modo de atalhar, não deixar fugir o interesse escamando esse “peixe solúvel” dos detalhes ínfimos, das reviravoltas que enjoam e afastam do principal para o secundário o foco da atenção dos leitores, recordemos outra reportagem folhetinesca que veio a lume a 25 de setembro de 1918, outra vez com honras de primeira página n’“O Século”, e sob um título desses que puxam pela manga qualquer leitor que se chegue à banca dos jornais: “Lisboa sangrenta/ Um Crime Misterioso/ Foi cometido, ao que parece, na madrugada de ontem, no terceiro andar do prédio n.º 178 da Rua dos Fanqueiros”. Desdobrando o caso pelos dias seguintes, o suposto assassínio teria ocorrido na pensão de uma Júlia Leal, e a vítima, outra mulher (“uma dama loira que fez, nos últimos tempos, sensação em Lisboa”), fora morta à facada pelo companheiro, numa sujeira que alguém limpou depois deste meter o corpo num carro e dar-lhe o sumiço a coberto da noite.
Num arrepiante crescendo, os pormenores iam cavalgando a imaginação dos leitores de edição para edição, e uma vez mais estes tinham a boca desfeita naquele anzol, mas o isco não era apenas mais uma estimulante narrativa policial passando-se num cenário reconhecível. Se, como acontecera antes, depois de atingir o clímax se revelou aos leitores que tudo não passara de uma mistificação urdida por Reinaldo Ferreira com a ajuda de Stuart Carvalhais e de Armando Bastos Gonçalves – como nos relata Eduardo Sucena no livro “O Fabuloso Repórter X (edição Vega) –, esta charada tinha o fito de “chamar a atenção para a tendência revelada pelos proprietários de hotéis e pensões para encobrirem os factos delituosos ali ocorridos a pretexto da salvaguarda do bom nome dos seus estabelecimentos”.
Foi o próprio Reinaldo Ferreira quem se deixou fotografar, com uma peruca loura e um vestido, todo besuntado de sangue de galinha, depois de ser vítima do amante (Stuart Carvalhais). E assim, ao assumir a trapaça, o repórter questionava num subtítulo em caixa: “Quantos crimes não se cometerão em Lisboa sob o silêncio cúmplice de proprietários de hotéis e de pensões?”
O ineditismo da abordagem chocaria de frente com os pruridos dos nossos dias, os elevados e hipócritas padrões que sempre preferem a indiferença ao empolgamento que um golpe teatral destes tende a produzir, manchando a pureza do ofício. Mas naqueles tempos foi um serviço que se prestou ao jornalismo, e disso mesmo é testemunho a forma como Ferreira de Castro gabou o colega e amigo, afirmando que foi um dos maiores jornalistas portugueses de todos os tempos e um dos maiores entre os europeus do seu tempo. O autor de “A Selva”, associa o excesso de imaginação não a uma propensão do Repórter X para intrujar, antes a uma particular feição do seu carácter que o fazia resvalar diante da opulência que a fantasia punha ao seu alcance. O próprio Reinaldo Ferreira chegou a falar do seu processo de escrita como algo que o enredava e surpreendia também: “Escrevo com a curiosidade de quem está lendo uma obra policial. Muitas vezes abanco à minha mesa sem ter um plano traçado. Dez minutos de reflexão e a reminiscência de um passado real da minha vida vagabunda bastam para semear todo o assunto. Depois lanço a pena numa correria sobre o papel e é ela que escreve. E eu leio, emocionado e impaciente por decifrar o mistério, como se fosse um leitor de verdade.”
Ferreira de Castro explica isto como uma profunda característica da personalidade do repórter, que, “meia hora depois de ter assistido a um acontecimento, se tornava incapaz de o reproduzir tal qual o vira”. O jeito como as suas velas seguravam a menor brisa e faziam disso uma prosa bombástica é algo incompatível com este desejo de passar a realidade a papel químico para os jornais. Isto não significa, contudo, que Reinaldo desdenhasse a verdade, mas era o tipo de cultor de enredos empenhado em contar a verdade como ela seria se pudesse ter pensado duas vezes, e posado para a História.
Diante de um qualquer acontecimento, Reinaldo Ferreira não resistia a vesti-lo, “fatalmente, de aspectos imaginários, tirando-o da mesquinhez da verdade para o colocar em relevo, em grandeza, em interesse – para que ele fosse o que devia ter sido e não o que fora”. Isto diz-nos uma vez mais Ferreira de Castro, notando que o não fazia “por cálculo, por técnica, por experiência do ofício, mas espontaneamente, naturalmente – porque não podia ver a vida de outra maneira”. É um determinismo que soa algo absurdo, mas porque não aceitar que ele era o tipo de homem que, pela própria personalidade, era forçado “a ser infiel à realidade, porque lhe falta, geralmente, encanto, mistério, fascinação”.
Quando hoje lemos nos jornais a vida toda passar com as suas catástrofes, crimes para um século e mais, mas tudo tão moído, um ar de derrota em que se morre sem saber se se é vítima da calamidade ou do tédio, e sem direito ao espanto, nesse estilo seco que ainda se julga objectivo, não dá para pensar que o melhor seria raptar o leitor à indiferença nem que fosse por meio de uma “reinaldice”? Anda tudo com um gosto genérico, meio afásico até, nos jornais, e isso não nos safou das maiores patranhas, dos conluios mais despudorados entre a política e a finança. E qual foi a reacção? Não faz sentido então falar-se, como Nelson Rodrigues, nos efeitos da “desumanização da manchete”?
Ele testemunhou como o Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, se foi parecendo cada vez mais com certa página célebre de ficção: “Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio espiar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa suja."
E daí conclui: "Eis o que eu queria dizer: — a primeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões e das batalhas. E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões de copy desks? Oitenta milhões de impotentes do sentimento.”
Soterrados neste estado de coisas, sufocados sob os escombros da era da informação, que parece ter-nos tornado incapazes de reagir aos acontecimentos com “um sentimento forte”, com outra coisa que não uma indignação que logo se desespera e morre como pasto para as flores do tédio, é assim que assistimos com ânimo à tentativa de recuperação da memória e obra do Repórter X por parte das PIM! edições. Tendo lançado no ano passado “O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho”, coincidindo com os 120 anos do nascimento do autor – e 100 anos da publicbação daquele folhetim –, este ano seguiu com “Punhais Misteriosos”. Outro folhetim assinado por outro pseudónimo (Edgar Duque), e que, além de uma edição em três volumes que há 90 anos não se reeditava, deu azo a uma adaptação cinematográfica, uma entre as muitas iniciativas que marcaram também o percurso cinematográfico deste homem que, além dos argumentos, também se fez à realização, chegando a criar uma produtora: a Repórter X Film.
Hoje que os jovens artistas tanto se desdobram em múltiplas abordagens, mas sempre com uma prostração cínica, uma atitude blasé que “sente tédio antes do desejo”, faz sentido lembrar aquele que, como escreveu Artur Portela, “aos vinte anos é considerado o primeiro repórter português, título que jamais ninguém lhe arrebatará, na vida como na morte!” E reveja-se o retrato que ficou deste que, mentindo, deixou a sua verdade cantando espavorida no ramo de uma árvore que, um século depois, está ainda de pé: “Vale dez jornalistas, uma redacção inteira a trabalhar! Sozinho, em mangas de camisa, a gaforina despenteada, com o eterno morrão do cigarro ao canto da boca, do qual nem sequer esparge a cinza porque não perde um segundo, no delírio de escrever – ele tanto faz, de ponta a ponta, um diário de quatro páginas como uma revista de trinta e duas, enchendo-os dos temas mais palpitantes e das imagens mais vibrantes!”
Se o jornalismo quer debater algo de relevante na sua prática – a sua sobrevivência, por exemplo –, não faz sentido perguntarmos hoje o mesmo que o poeta Manuel Resende perguntou no seu livro de 2004, “O Mundo clamoroso, ainda”: "Que raio de reportagem insuportável pode ainda extrair um resto de humanidade destes fragmentos, destas letras que se espalham pelas estradas, quando as bombas dispersaram a fala e as poucas palavras?”
O caso de Reinaldo Ferreira parece ser paradigmático de uma reabertura dos processos no que diz respeito às técnicas viáveis para o jornalismo lidar hoje, mesmo que teatralmente, com um mundo que não cabe já nem respira se metido à força numa narrativa estreitinha segundo o modelo da objectividade.
Da mesma forma que “a Natureza aborrece o monstro”, é evidente que ao buscar-se hoje a verdade deve poder encontrar-se mais do que esse cadáver que não perturba ninguém. Os textos que nos trazem as últimas serão tidos como uma dieta forçada por esses que levam a cabeça a latejar de uma visão mais funda e complexa das coisas. Os leitores que já trazem as suas próprias pulgas, vêem os redactores matá-las entre as unhas dessas manchetes humilhantes. E é assim que, mesmo se “os factos colam o focinho à nossa cara”, somos forçados a dar razão a Manuel Resende quando nos diz em nome de muitos: “Vós sabeis que não queremos a verdade, porque, hoje, a verdade fala a fria fala da noite da noite, da morte morta, da morte sem vida, sem olhos, nem boca, nem mãos”.
E não é que se abandone a verdade, mas como o poeta explica: “A verdade existe, deixá-la existir. Hoje, porém, os que a perseguem com todos os seus poderosos instrumentos, são capazes de a encontrar, mas deixaram-na em que estado?”
Parece que a verdade deixou de nos servir, alienados que estamos, recolhendo-nos para ensaboar a roupa suja diante dos napoleões e das batalhas. E aqui, vale a pena somar outro exemplo do inaceitável jornalismo do Repórter X, quando certo dia este alugou um fato esfarrapado e coberto de vérmina, envergando a máscara de um pobre (condição de que nunca andou muito longe), para se encostar a uma esquina do Chiado e, com uns óculos negros de cego, como nos relata Artur Portela, estender a sua mão à caridade pública.
O que a seguir se passou foi tema da crónica “flagrante, caricatural, satírica, em que perpassam com os nomes dezenas de figuras conhecidas”, fazendo rir Lisboa inteira. O pedinte pôs a voz à altura das lamúrias, e viu desfilar essa realeza apaparicada pelas colunas sociais, “os ventres dourados da burguesia”. Mas também foram alvo do repórter “os seus camaradas egoístas e distraídos”.
Podemos hoje obstar à baixeza destes métodos sensacionalistas, ao perigo de devassa e atentado contra o bom nome. Mas não é esta mesma geração, tão ciosa das suas dignidades, que, com o seu inflamado sentido de justiça, tem precipitado a humanidade para a linha final (a da extinção), deixando que caia a máscara da sociedade como um todo solidário?
E também podemos rir-nos com os episódios daquela vida que caíram no anedotário do jornalismo português, julgando que nada temos a aprender com o passado, com a ousadia, o talento e a mordacidade de um jovem que inventou a sua lenda contra o bom nome, as boas práticas e a geral irrelevância que tão bem conhecemos. Foi ao ponto de encenar uma viagem "à Rússia dos sovietes", em 1925, de se despedir da família e dos amigos no cais de embarque, apenas para se esconder por uns tempos, enquanto iam saindo as crónicas vindas do frio e da delirante lonjura daquele país mítico. Vinte e cinco artigos, muitos deles enviados de Paris, com as mais vertiginosas revelações sobre a disputa de poder entre Estaline e Trotsky depois da morte de Lenine. Na verdade, nunca pôs os pés em Moscovo. Mas isso não o impediu de realizar uma visão marcante da conturbada cidade, valendo-se dos testemunhos de portugueses em que supostamente ia tropeçando, desde o porteiro do Kremlin ao homem que embalsamou Lenine. E é impossível saber, entre tudo o que escreveu nos 38 anos da sua passagem fulgurante pelo mundo, quantas vezes não foi a verdade a impedi-lo de contar uma boa história.
Se forjou entrevistas com a lendária espiã Mata-Hari e com o seu mestre Conan Doyle, se nem sempre foi denunciado, pelo menos podemos pensar que os seus leitores foram afinando uma atenção detectivesca ao lê-lo. Queriam apanhá-lo em mais uma, fosse em sinal de admiração, fosse por tomarem como desprezíveis os seus métodos. No fim, perguntamos: Vale mais um jornalista que seduz e desperta, cuja prosa tem o gosto adocicado e ordinário da mentira ocasional, mas que nos puxa para uma relação ardorosa com a realidade, ou estes que mal se distinguem entre si, e que nos servem a verdade como dobrada fria, esse prato que, mesmo se cheio até cima, mesmo em cima do acontecimento, nem sabem como hão-de servi-lo quente.