Ainda que fosse encarado pela maioria como um momento de apoteose e de libertação, o 25 de Abril de 1974 não agradou a todos. Havia quem se identificasse com os valores do Estado Novo – Deus, Pátria e Família –, quem tivesse negócios ou empresas que a revolução vinha pôr em risco ou ainda quem tivesse apoiado ou participado diretamente no governo de Marcello Caetano.
A seguir ao golpe militar, muitos tiveram de exilar-se, sobretudo no Brasil, mas também em Espanha e na Suíça. Outros juntaram-se a organismos como o ELP (Exército de Libertação de Portugal) e fizeram oposição interna à nova ordem com métodos terroristas, como incendiar sedes do Partido Comunista no Norte. E houve também quem se adaptasse à democracia e aos seus processos. Adriano Moreira, antigo ministro do Ultramar e mais tarde presidente do CDS, protagonizou um desses casos.
Jaime Nogueira Pinto era, na primavera de 1974, um jovem nacionalista que acreditava que o país “tinha uma missão histórica a cumprir” e que para isso não podia prescindir das colónias – sentiu na altura que “o Portugal de que gostava ia acabar”. Em entrevista ao semanário “Sol” em 2017 afirmou que, como ele, havia muitos patriotas descontentes com o rumo que o país estava a tomar. “Era mais gente do que parece, mas foi completamente ignorada, até porque essa geração praticamente decidiu não falar, talvez por uma questão de pudor”. Ou, porventura, por sentir que estava do lado ‘errado’ da História.
“Após a Revolução de 1974 verificou-se uma vaga de emigração de Portugal (Continente, Angola e Moçambique) para o Brasil”, escreve Luísa Luiz-Gomes no recente “Dos Dois Lados da Barricada” (ed. Planeta), uma recolha de depoimentos sobre “como foi vivido o pós-25 de Abril no seio das famílias portuguesas mais conservadoras”.
Uma dessas famílias com pergaminhos era a dos Pinto Leite, apoiantes do regime e ainda descendentes distantes de reis de Portugal. Na sequência da revolução, João Maria Anjos Pinto Leite (1928-1987) foi “saneado do cargo de administrador” de uma empresa e a sua firma de construção civil viu-se paralisada por falta de encomendas. “Ficou sem trabalho e, em pleno Verão Quente de 1975, teve de partir para o exílio em busca de sustento para a família”, revela o livro de Luísa Luiz-Gomes. Pouco depois juntar-se-lhe-iam a mulher, Maria Domingas, e os filhos. “Primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, esta mulher de armas arregaçou as mangas e pôs-se a trabalhar”, a vender tupperwares.
Como era o Brasil naquela época? A jornalista e escritora Leonor Xavier, que era casada com um professor da faculdade de Direito que fez parte do governo de Marcello Caetano nos últimos 40 dias do regime, também foi para o outro lado do Atlântico, mas de livre vontade. Numa entrevista ao “Sol”, descreveu: “Era tudo novo, era tudo diferente. O que me espantou em S. Paulo? Por exemplo, o papel era caríssimo. Havia falhas de luz nos prédios. Muitas vezes não tínhamos telefone. Era outro mundo”.
Quem também estava exilado no Brasil era o próprio Marcello Caetano. Numa entrevista concedida ao semanário “O Mundo Português” em 1976 recordou o fatídico dia 25 de Abril de 1974.
Da ovação à derrocada
O primeiro indício inequívoco de uma insurreição nas Forças Armadas fora dado a 16 de março, naquele que ficou conhecido como o Golpe das Caldas. Duas semanas depois, a 31 de março, o chefe do governo decidia assistir de surpresa a um Sporting – Benfica no Estádio de Alvalade. “Quando o alto-falante anunciou que eu me achava no camarote principal, a assistência, calculada em 80 mil espetadores, como que movida por mola oculta levantou-se a tributar-me quente e demorada ovação que a TV transmitiu a todo o país”, declarou na entrevista. Aparentemente o povo estava com o regime.
Mas esta adesão, se era autêntica, durou muito pouco. A 25 de Abril, sabendo que estava em curso uma revolta militar, o presidente do Conselho disparou para o Quartel do Carmo. “Ao passarmos perto do Terreiro do Paço vimos patrulhas que ocupavam as embocaduras das ruas. ‘O general Andrade e Silva está tomando as suas precauções’, comentámos. Não estava. Eram tropas revoltosas. Deixaram-nos passar sem dar por nós…”, testemunhou a “O Mundo Português”.
“Quando cheguei lá fui recebido cortesmente pelo general, à paisana (como se manteve sempre), calmo, parado, quase indiferente. Tudo corria com normalidade. Até demais. O facto de haver uma revolução e estar presente o presidente do Conselho não levou aqueles brilhantes oficiais a tomar quaisquer providências de defesa exterior do quartel […]. Tudo se dispôs para transformar o quartel numa ratoeira”, lamentou.
Nessa entrevista recusava ainda a acusação de “passividade” perante os acontecimentos. “O que não encontrei foi quem combatesse pelo governo. […] O povinho, uma vez triunfante no Terreiro do Paço, veio em passeata até ao Largo do Carmo, fronteiro ao quartel, que ocupou sem qualquer resistência. Assisti pasmado à inércia do comando da G.N.R.”
Ali no Carmo, transformado em ‘quartel-general’ do regime condenado, Marcello acabaria por receber Salgueiro Maia, que ameaçou: ou o governante se rendia ou as tropas revolucionárias iam provocar um banho de sangue. “Vá lá para fora, acalme essa populaça e aguarde”, terá ordenado o chefe do governo. “Daí a minutos ouvi que o barulho do povoléu no largo amainava: o capitão comunicava qualquer coisa que desencadeou a seguir um delírio de manifestações”.
Marcello Caetano não precisaria de esperar muito mais de meia hora pela chegada de António Spínola, que ainda antes lhe garantira, por telefone, a sua lealdade. “Está preparado um avião que levará o senhor Presidente da República, Vossa Excelência e alguns ministros mais visados para a ilha da Madeira, como medida de precaução”, comunicou-lhe Spínola. O sucessor de Salazar já não regressaria ao país.
“Ele chega por São Paulo, depois vai para o Rio, fica hospedado, um tempo, no Mosteiro de São Bento – muito bonito, no centro o Rio de Janeiro […]. Acompanhava a liturgia dos frades”, explicou em entrevista ao “Diário de Notícias” o brasileiro Francisco Martinho, biógrafo de Marcello. “Logo depois, ele aluga um apartamento”, e recebe um convite para dar aulas na Universidade Gama Filho e dirigir o seu instituto de Direito Comparado. Deu aulas até ao fim da vida, que chegou a 26 de outubro de 1980.
Vaivém brasileiro
O Brasil vivia então o período da ditadura militar e, embora reconhecesse de imediato o novo governo português, tornou-se um país de acolhimento de muitos lusitanos saudosos do regime, bem como de figuras proeminentes do período anterior à revolução – empresários, como António Champalimaud, e banqueiros, como Ricardo Salgado (cujo banco, o Espírito Santo, fora nacionalizado), que tentavam reconstituir as suas fortunas e os seus impérios.
A sua saída de Portugal, ao mesmo tempo, abrira espaço para que se afirmasse uma nova geração de empreendedores, entre os quais se destacava Belmiro de Azevedo.
Um percurso inverso fez José Hermano Saraiva, antigo ministro da Educação de Salazar. No dia 25 de Abril de 1974 encontrava-se em Brasília, onde assumira em 1971 o cargo de embaixador. Embora fosse uma figura grada do regime, a revolução trouxe-o de volta para Portugal.
Chegado a Lisboa, o primeiro sítio onde se dirigiu foi ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Fui lá duas vezes e não consegui ser recebido. O novo ministro, dr. Mário Soares, justificou-se mandando dizer que dentro de minutos saía para um país estrangeiro, o que vi pelos jornais corresponder à verdade. […] O meu antigo e activo primeiro secretário em Brasília, que tanto me pedira que o recomendasse […] nem desculpa deu para o facto de não me receber”, escreveu Hermano Saraiva no seu “Álbum de Memórias”.
Também para a família o regresso a Portugal não foi fácil. “Dois dos meus filhos, o Pedro e o Paulo, tiveram a temeridade de comparecer num arraial popular […]. Alguém os reconheceu e gritou: “Estão ali dois fascistas!”. Brutalmente agredidos por uma multidão furiosa, foram retirados a custo, e o Paulo foi levado para o hospital. Nem um nem outro tinham tido alguma vez a menor actividade política”.
Com o tempo, porém, as feridas haveriam de sarar. E, da mesma forma que Champalimaud e Salgado se reestabeleceram e recompuseram as respetivas fortunas em solo nacional, o historiador recuperaria o nome e o prestígio através de popularíssimos documentários na televisão.